A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pautou para esta quarta-feira (10) o julgamento do caso de um homem negro acusado em 62 ações penais com base apenas em seu reconhecimento fotográfico.

Suas fotos foram retiradas de perfis nas redes sociais, incluídas no álbum de suspeitos da delegacia de polícia de Belford Roxo (RJ), e passaram a ser reconhecidas por vítimas de roubo na região.

Paulo Alberto da Silva Costa, homem negro de 36 anos, está preso desde 2020 por um dos casos. Ele trabalhava como porteiro, e nunca havia sido preso ou acusado de crimes.

Conforme dados do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), que acompanha o caso no STJ, até o fim de 2022, Paulo foi absolvido em 17 processos, condenado em 11 e teve duas denúncias contra si rejeitadas. Ainda estão em aberto 32 casos.

O instituto relata que não houve coletas de provas contra o acusado durante as investigações, além do reconhecimento fotográfico. Paulo sequer foi ouvido pela polícia.

“Bastaram os reconhecimentos para que as investigações fossem concluídas pela polícia e encaminhadas ao Ministério Público, dando início aos processos criminais”, afirma a entidade.

Em um extenso documento, de 152 páginas, enviado aos ministros do STJ, o IDDD relata que Paulo trabalhava como porteiro em um condomínio do programa Minha Casa Minha Vida, onde morava, e completava sua renda lavando carros na região até ser preso em março de 2020.

As acusações contra ele envolvem 59 roubos de veículos, cargas ou transeuntes, uma receptação, um homicídio e um latrocínio, entre dezembro de 2017 e março de 2020.

Jurisprudência

Os ministros do STJ analisarão em conjunto vários habeas corpus levados à Corte pela defesa de Paulo, para que se tenha uma decisão uniforme. O colegiado poderá firmar um precedente sobre casos de nulidade na investigação de crimes que se baseiam no reconhecimento fotográfico.

O julgamento na Terceira Seção da Corte reúne os ministros das duas turmas de direito criminal do STJ.

A jurisprudência no STJ é de que o reconhecimento de suspeitos deve seguir o estabelecido no Código de Processo Penal (CPP). A lei manda que o procedimento seja feito colocando lado a lado pessoas que tenham alguma semelhança.

Apesar de não ter previsão legal, o reconhecimento por foto é prática rotineira em delegacias.

Nesses casos, o STJ entende que a prática deve seguir a regra do CPP, e ser uma etapa prévia ao reconhecimento presencial. Além disso, não pode ser o único elemento para acusação, devendo haver produção de outras provas.

Na seção em que a Sexta Turma do STJ remeteu o caso para análise da Seção da Corte, em 27 de abril, o ministro Rogerio Schietti disse que, a princípio, o caso é um dos “mais trágicos de condenação baseada em reconhecimento de suspeito”.

“Evidentemente, ainda será necessário um exame mais aprofundado, mas, a um primeiro olhar, me pareceu ser um dos casos mais trágicos de condenação baseada em reconhecimento de suspeito, em total desacordo com o que determina a lei e, agora, em desacordo com o que preconizamos em nossa jurisprudência”, declarou. “É importante, sim, levarmos o quanto antes a consideração da Seção”.

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que faz a defesa de Paulo junto com o IDDD, disse que os inquéritos contra ele possuem “uma série de inconsistências”. Há, por exemplo, descrição do suspeito com altura incompatível com a de Paulo.

“Na maioria dos casos, o reconhecimento fotográfico não ocorreu no mesmo dia da denúncia e, em uma delas, a pessoa que tinha dito não ter reconhecido Paulo Alberto mudou de opinião um ano depois”, afirmou o órgão.

Outro ponto destacado é que o próprio reconhecimento fotográfico na delegacia foi “tendencioso”.

“Não há nenhuma informação oficial nos autos dos inquéritos policiais que indiquem o motivo pelo qual Paulo Alberto da Silva Costa, que não tinha sequer uma passagem pela polícia e nunca foi preso em flagrante delito, tornou-se suspeito da prática de crimes patrimoniais na região daquela delegacia”.

Racismo

O reconhecimento por foto é apontado como uma prática que reforça o racismo estrutural do sistema de Justiça. Levantamento nacional feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro registrou que em 83% dos casos de reconhecimento equivocado as pessoas apontadas eram negras.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o dado denuncia que o procedimento “é marcado pela seletividade do sistema penal e pelo racismo estrutural”.

O conselho criou um grupo de trabalho em 2021 para discutir o tema. No final de 2022, o plenário do órgão aprovou, por unanimidade, uma resolução que estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário.

Entre os principais aspectos da resolução, destacam-se a delimitação, por natureza, do reconhecimento de pessoas como prova e o estabelecimento de que o reconhecimento seja realizado preferencialmente pelo alinhamento presencial de quatro pessoas e, em caso de impossibilidade, pela apresentação de quatro fotografias, observadas, em qualquer caso, as diretrizes da resolução e do Código de Processo Penal.

A norma também prevê que, na impossibilidade de realização do reconhecimento conforme esses parâmetros, outros meios de prova devem ser priorizados.

De acordo com a resolução, todo o procedimento de reconhecimento deve ser gravado, com sua disponibilização às partes, havendo solicitação.

Fonte: CNN Brasil