Grada Kilomba é fundamental no pensamento filosófico e artístico contemporâneo, seja por suas contribuições teóricas —é incontornável citar “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano“, livro sucesso de venda e de público no Brasil e em vários lugares do mundo—, seja em seu trabalho artístico —se dedica criando obras e exposições memoráveis. No Brasil, apenas para citar as mais recentes, pudemos ver na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2019, sua aclamada exposição individual chamada “Desobediências Poéticas“, que levou o público a esperar em filas.

Acompanhei a distância “O Barco”, em que Kilomba faz uma reflexão sobre o navio que transportou milhões de pessoas africanas sequestradas de seu continente nas embarcações coloniais, em sua boa parte embarcações portuguesas.

A artista tem apresentado trabalhos em museus importantes nos Estados Unidos, na França, no Japão, na Suécia, na Alemanha, entre outros. Dada a importância e a internacionalização da obra da artista portuguesa, foi com incredulidade que tomei conhecimento da ata do júri que rejeitou a candidatura do projeto “The Wound – A Ferida”, da artista, à representação oficial portuguesa na 59.ª Exposição Internacional de Arte, a Bienal de Veneza de 2022.

A incredulidade se deve aos argumentos apresentados por um membro do júri. Segundo a carta aberta enviada para a imprensa pelo curador Bruno Leitão, que trabalha com Grada Kilomba na candidatura, não houve somente incoerências, mas também irregularidades graves nos critérios de avaliação, bem como “violações explícitas dos ‘Deveres do Júri’, que são definidos por lei”.

“De acordo com regulamento e legislação em vigor, o resultado é apurado por média ponderada. Como consta nas atas, não reflete a apreciação maioritária dos membros do júri sobre a qualidade da nossa candidatura nem a relevância da proposta artística e, muito em especial, da artista e equipe envolvidas. Segundo as atas, a votação de um único membro do júri, constituído por quatro elementos, impactou de forma prejudicial a nossa candidatura.”

Ainda de acordo com a carta aberta, para desconsiderar a candidatura, esse único membro do júri utilizou afirmações da seguinte ordem: “A ideia de racismo como ferida aberta foi já objeto de inúmeras outras abordagens, de modo que a proposta apresentada não deixa perceber como numa exposição poderá rever, criticar ou prolongar essa ideia tão já discutida e mesmo exibida de múltiplas formas”. “Ainda que a equipe técnica e artística seja competente, o mérito artístico da artista Grada Kilomba não é satisfatório.” “O projeto apresentado não possui o alcance artístico que, a meu ver, a representação oficial tem obrigatoriamente de possuir.” “Não está comprometido com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa.”

Vamos nos ater a essas afirmações, no mínimo bizarras. Primeiro, não é um argumento válido dizer que a ideia de racismo como ferida aberta já foi objeto de outras abordagens. Sendo o racismo um problema sistêmico e estrutural, não é um tema que se esgota. Uma série de artistas brancos, quando se inspiram na história de brancos europeus, reafirmam o pacto narcísico da branquitude e da “história contada pelo ponto de vista dos vencedores” —parafraseando Walter Benjamin, não vemos esse tipo de argumento ser usado.

Se aborda as consequências do colonialismo, como brasileira, vinda de um país que foi colônia de exploração de Portugal e sofre com profundas desigualdades consequentes disso, penso que esse argumento do membro do júri soa como gritos de uma branquitude ressentida com os questionamentos de seus privilégios que vêm historicamente decidindo quem pode ou não falar.

Dizer que o projeto apresentado não possui alcance artístico e não está comprometido com a internacionalização da cena artística portuguesa soa novamente como ressentimento. Primeiro porque não é verdade. Como apontei acima, a artista vem apresentando suas obras em diversos países. Trata-se de uma fala desonesta e falaciosa, quando se afirma o que não se pode provar.

Ao final, é um argumento ridículo, assim como a insistência de um país apegado ao romance de sua colonização violenta. Grada Kilomba é gigante, rompe fronteiras e seguirá seu caminho pelo mundo. Porém, que fique registrado na história, até para que não se repita com mais ninguém, tanto a vergonhosa decisão, assim como nosso repúdio.

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