Tenho que hoje fazer uma reparação. Algumas semanas atrás, escrevendo sobre lembranças inusitadas de viagem, talvez eu tenha passado uma ideia errada. Agora quero me corrigir.

Quando batizei de migalhas milagrosas (este era também o título da coluna) alguns momentos inesquecíveis pelo mundo, eu achei que tinha dado a impressão de que só as vivências mais imprevisíveis valiam a pena serem registradas: um Buda soterrado em Myanmar, uma travessura no Metropolitan Museum de Nova York, um abraço de uma criança em Papua Nova Guiné.

Dei-me conta de que, para os que lessem sem atenção, eu poderia estar reproduzindo uma das atitudes que justamente mais desprezo entre viajantes de todas as partes: esnobar os pontos turísticos mais óbvios, como se fossem atrações menores.

São os tais cartões-postais para os quais uma certa espécie de turista torce o nariz como se fossem descobertas banais. Torre Eiffel, em Paris. Angkor Wat, em Siem Reap, no Camboja. Fontana di Trevi, em Roma. Os campos de arroz de Bali. O miradouro de São Pedro de Alcântara, em Lisboa. O Taj Mahal, em Agra, na Índia.

Se passei essa ideia, peço perdão. E quero agora mesmo dizer que em cada um desses pontos ultra explorados vivi pelo menos um momento de deslumbramento —e, em alguns casos, vários.

Os donos de passaportes carimbados e ligeiramente metidos farão cara feia para essas histórias que envolvem cenários que são clichês.

Mas é com orgulho que eu relembro aqui agora alguns desses encontros, já que ultimamente é só disso mesmo que sobrevivem as nossas viagens: de memórias.

Como a meia-noite em que levei meu grande amor para ver a torre parisiense cintilar —um episódio que já contei aqui em detalhes. Ou mesmo o dry martíni que tomei, também tarde da noite, em frente ao templo principal do complexo de Angkor, uma maluquice sensual proporcionada por um casal de ingleses que se hospedava no Aman de Siem Reap (eu estava de bico).

O silêncio que senti ao entrar no belíssimo mausoléu de mármore branco, talvez a visita mais imperdível de toda a Índia, é algo que até hoje não sei explicar. Lá fora, centenas de turistas falando alto e procurando seus sapatos. Dentro, uma mudez solene, menos pela “princesa de Mahal” ali enterrada, como canta Jorge Ben Jor, do que pela lenta assimilação de tanta beleza.

No tal miradouro lisboeta, este mochileiro ainda jovem, depois de uma noite de amores e prazeres, viu o objeto de seu desejo deixar o buquê de jasmim que ele acabara de entregar como presente de despedida dissolver-se nas águas da fonte central —uma lembrança de que as paixões são diáfanas e efêmeras.

Na Fontana di Trevi, um beijo roubado, daquelas aventuras adolescentes que só quem carrega um coração que teima em amadurecer consegue juntar coragem para dar. Era madrugada, hora das carícias mais furtivas, ainda mais a céu aberto —e, ao fundo, as dramáticas esculturas fingiam que não eram testemunhas de gestos tão ousados.

E aí têm os campos de arroz de Bali, em Tegallalang, aquela cascata de verde sobre verde capaz de nos hipnotizar mesmo quando toda sua atenção parece ter sido monopolizada por quem você está apaixonado, no caso, quem está com você admirando aquela paisagem fenomenal.

Não são apenas os olhos que absorvem aqueles tons, mas seus seus dedos ficam mais sensíveis ao tocá-los e os próprios pulmões parecem respirar tudo verde. Os sons também soam esverdeados e você descobre que é essa a verdadeira cor do amor.

E aí está meu pedido de desculpas por ter, inconscientemente, relegado essas referências tão surradas a um segundo plano. Ao contrário, guardo esses retratos nos cantos mais ternos dos meus álbuns e espero ainda poder viver, nesses mesmos lugares, novas e mais fortes experiências.

Porque, caso você não tenha reparado, o que une tudo isso é a paixão. Pelas viagens, pelas pessoas, pela vida. Que logo a gente retoma, assim que o mundo voltar a girar.

Fonte: Folha de S.Paulo