Trancados em casa, e já estafados de tantas telas, temos nos livros uma válvula de escape ainda maior que de costume para vislumbrar paisagens e mundos além das paredes que nos cercam.

Imagino o quanto já se escreveu, nesta interminável pandemia, sobre viajar com livros. Estou pensando não em relatos de viajantes, mas em livros que, sem falar propriamente de viagens, aguçaram-me na vida a vontade de conhecer lugares.

Também são muitos. Recorro à memória para, embaralhando a cabeça como um globo de loteria, deixar que escoem as bolinhas sorteadas ao acaso.

A primeira tarefa é eliminar os mais óbvios, os livros de viagem. Há para todos os gostos, dos introspectivos aos aventureiros —e inclusive aos que são ambos, como “Cem Dias entre Céu e Mar”, do navegador solitário Amyr Klink.

Nesta categoria —da qual prometi não falar, mas já falando— entrariam também a tresloucada perambulação beatnik de Jack Kerouak, “Pé na Estrada”; ou a romântica aventura juvenil de Che Guevara, “De Moto pela América do Sul”, que muito depois inspiraria o filme “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles. Não confundir com os “Diários de Bicicleta”, relatando viagens sobre duas rodas por cidades tão díspares como San Francisco, Buenos Aires e Manila, nas Filipinas, realizadas pelo músico David Byrne (da banda Talking Heads).

Não, não é deles que queria falar. Estava pensando mais em livros como “Paris é uma Festa”, com relatos escritos por Ernest Hemingway no período em que não era turista, mas um morador da cidade, em cujos cafés, munido de lápis (literalmente) e papel, inventava livros. Me deu vontade de conhecer Paris, bem antes de ter pisado lá.

Da mesma forma que “Shogun”, de James Clavell, acendeu minha curiosidade pelo Japão: embora a história se passe no século 17, ela é vista pelos olhos de um ocidental (um marinheiro inglês) impactado pelas diferenças culturais que presencia —eu intuía que o moderno Japão, no fundo, tivesse muito daquelas idiossincrasias seculares, o que se confirmaria quando finalmente conheci o país.

“Sob o Sol da Toscana”, de Francis Mayes, é de dar água na boca por essa região da Itália cuja extrema beleza, no entender de Stendhal, poderia literalmente enlouquecer de enlevo uma pessoa. Mas não tem a mesma dose fantástica de humor que o inglês Peter Mayle imprimiu ao relato de quando se mudou de Londres para o sul da França (“Um Ano da Provence”), um projeto que parecia ter-se tornado inescapável para mim quando o li.

E Nova York? Parece materializar-se em concreto, parques e pessoas quando lemos romances de Truman Capote (como “Bonequinha de Luxo”), ou de Tom Wolfe: deste, “Fogueira das Vaidades” nos faz sentir na cidade, seja em festas nas coberturas dos yuppies, na periferia liderada por pastores charlatães, ou nos bares dos jornalistas ébrios.

Pouco importa que alguns deles se passem em outras épocas —as cidades e países viram personagens involuntários, e em mim acenderam o desejo de conhecer ou revisitar. Vale para a Praga de Milan Kundera (“A Insustentável Leveza do Ser”); a Istambul de “A Ponte das Turquesas”, uma história da cidade escrita pela brasileira Fernanda de Camargo-Moro; a Índia de Herman Hesse (“Sidarta”); ou —repetindo uma cidade— as memórias do jornalista americano A. J. Liebling em “Fome de Paris – Memórias de um Gourmet Apaixonado”.

A lista seria imensa. Mas interrompo para adicionar uma outra categoria: a loucura da pandemia é tamanha que não surpreende que muita gente use o escapismo dos livros para sonhar não somente com outros lugares existentes, mas também para destinos mágicos, janelas para delírios infinitos.

Aí me lembro dos mundos fantásticos descritos em livros lidos na adolescência, como “As Brumas de Avalon”, de Marion Zimmer Bradley, ou “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. E—lido agora na quarentena com meu filho— o mundo fantástico de “Harry Potter”, de J.K. Rowling. Ou finalmente (e mais adequado à idade), “As Cidades Invisíveis”, inventadas por Italo Calvino: este atualmente frequentando minha mesa de cabeceira.

Fonte: Folha de S.Paulo