Claro que você é jovem demais para lembrar como era o sushi no Brasil dos anos 1980.

Deixe-me explicar.

Foi nessa década que a comida japonesa começou a se popularizar. Tenho memórias geograficamente privilegiadas: minha mãe trabalhava como coordenadora pedagógica no Colégio São José, que funcionava na rua dos Estudantes, bem no miolo da Liberdade.

No início dos 1980, quase só a comunidade nipo-brasileira se aventurava para dentro das portinhas, que já eram muitas na região. Eram lugares discretos, com maquetes das comidas numa vitrine voltada para a rua e nenhuma explicação no alfabeto latino.

Nós gaijins sequer sabíamos o nome dos estabelecimentos. Sabíamos que eram restaurantes por causa do cheiro de peixe e nabo ralado que vazava para a calçada. E por causa das tais maquetes, é óbvio.

Havia um caminhão de preconceitos que nos distanciava da cultura japonesa. Felizmente, foi nessa mesma época que a barreira começou a ruir.

São Paulo tinha muitos milhares de descendentes de japoneses. Eu, criado no Cambuci (bairro vizinho à Liberdade), sempre estudei com crianças das comunidades orientais. Era uma questão de poucos anos para que essas turmas mistas crescessem para se tornar uma geração menos intolerante –nesse ponto específico, que fique claro.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, a comida japonesa virava moda. Os almofadinhas de Wall Street, então denominados “yuppies”, adotavam uma estética meio nipônica, modernosa para a época –quando o Atari era o suprassumo da tecnologia gamer.

Com a numerosa comunidade japonesa de São Paulo, a tendência migrou quase instantaneamente para cá. O hardware já estava instalado.

Por volta de 1985, comer sushi já era cool nos Jardins (chamados, mui provincianamente, de “Manhattan paulistana”). E era uma aventura para dentro dos cenários de “Blade Runner”. E era caro. Caro, caro, caro. Uma extravagância ocasional, a menos que você fosse o yuppie Mickey Rourke de “9 e ½ Semanas de Amor”.

Sushi –e especialmente sashimi, que dispensa o arroz– sempre foi um artigo de luxo. Só a melhor parte do peixe melhor e mais fresco, cortado por um mestre sushiman que estudou o ofício por sabe-se-lá quantos anos. Durante muito tempo, eram as lendas atrás do balcão que escolhiam os clientes dignos de desembolsar uma fortuna por seus sushis. Não o inverso. A empáfia de Jun Sakamoto é uma reminiscência fóssil dessa época.

Época que está voltando, já adianto. Antes, porém, falta contar como o sushi se tornou uma comida banal no Brasil.

São dois os fatores principais.

Um deles foi o surgimento do salmão chileno de cativeiro, que fez desabar o preço (e a qualidade) do peixe adequado (ou mais ou menos, ou um pouco menos do que isso) para o sushi. Não importa: nos brasileiros amaram, e os restaurantes abraçaram com fervor o peixão laranja.

O segundo, mais importante, foi justamente esse amor do paulistano pelo sushi. O povo gostou demais da brincadeira. Com a explosão da demanda, caiu por terra o mito de que o sushiman precisava ser treinado por monges de Hokkaido durante sete anos antes de enrolar o primeiro hossomaki. Os donos de restaurantes cuidaram de capacitar mão-de-obra para atender toda aquela gente.

Logo, tínhamos sushimen mooquenses, lapeanos, cearenses, baianos, paraibanos. Alguns mantiveram o rigor e o método nipônicos; outros, naturalmente, fizeram adaptações e concessões. Num movimento orgânico, isso resultou na exportação do hábito para a Mooca, a Lapa, para o Ceará, a Bahia e a Paraíba.

O crescimento da oferta achatou o preço médio. E a maior parte do público estava pouco se lixando para a autenticidade da coisa, o que abriu mercado para a comida japonesa sub-ótima.

Assim nasceram os rodízios de salmão e as temakerias de posto de gasolina.

Essa farra do peixe cru, sinto dizer, será aniquilada pela pandemia. Comer sushi e sashimi voltará (está voltando) a ser um hábito para os poucos que podem pagar muito.

Qualquer comida crua oferece risco sanitário maior do que, digamos, uma pizza que vai direto do forno a 500 ºC para a caixa de papelão. No caso da culinária japonesa, como agravante, temos o fato de que o alimento é manipulado imediatamente antes do serviço.

Certamente é possível desviar-se dos riscos. “Um sushiman de boa formação sempre tomará todos os cuidados”, diz Telma Shiraishi, dona do restaurante Aizomê. “Ele sabe sobre a importância e a meticulosidade no cuidado ao lidar com alimentos crus e altamente perecíveis.”

Mas não é nada fácil. Um obstáculo extra é a cultura peculiar dos restaurantes de sushi. Para a experiência ser realmente bacana, o ideal é trocar uma ideia com o sujeito que prepara a sua comida enquanto ele trabalha.

“No Japão, os pequenos restaurantes de sushi que dependem dessa interação direta (e têm apenas uns poucos lugares de balcão) não conseguirão se adequar”, contou Telma após conversar com o japonês Hirotoshi Ogawa, uma das maiores autoridades mundiais em sushi. “É um desafio enorme.”

A tal adequação passa necessariamente pela redução no número de serviços, o que implica queda no faturamento do restaurante, o que na outra ponta da gangorra joga o preço lá para o alto. Quem paga a conta é sempre o consumidor.

Apesar da proliferação das temakerias e salmonerias e do sushi em pote, a alta gastronomia japonesa seguiu altiva e praticando preços conformes. O Aizomê, de Telma, é um dos melhores representantes dessa estirpe em São Paulo.

Essa cozinha luxuosa não somente sobreviverá, como também se tornará ainda mais exclusiva.

Quanto aos rodízios e quetais, fica a dúvida se resistirão à inevitável alta nos custos. Eu apostaria um rolinho primavera que não.

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Fonte: Folha de S.Paulo