Vou pegar jacaré na onda do Festival Fartura –que ocorre este fim-de-semana, no Jockey Clube de São Paulo, com parceria da Folha– para abordar um tema sensível: a responsabilidade política dos agentes da gastronomia.

O Fartura não é apenas uma feira de comidinhas gostosas e meio exóticas dos rincões do Brasil. É um evento que pretende promover a alimentação como cultura. E toda manifestação cultural tem uma dimensão política –apesar da baboseira ideológica daqueles que pregam a cultura sem ideologia.

O país vive um momento crítico. Caíram as máscaras. Caiu a ficha até para quem não queria enxergar o circo de horrores que foi montado em Brasília.

Ficou feio não se posicionar. O pessoal do setor tem cadeira cativa em cima do muro porque morre de pavor de perder a clientela. Dá para entender, mas não dá para aliviar a barra dessa gente. Nas circunstâncias presentes, a omissão é –pardon my French– coisa de cagão, de bunda-mole.

Restaurantes e bares são mais do que pontos de venda de comida. Eles funcionam, acima de tudo, como centros de acolhimento e de convivência. A cadeira não escolhe a bunda que vai se sentar nela. Recebe ateus, macumbeiros, maconheiros, pinguços, artistas, poetas, palhaços, políticos e até dentistas.

A cozinha acolhe imigrantes, ex-detentos, HIV-positivos, transgêneros, desajustados em geral. Cozinhar é uma atividade colaborativa, cooperativa, altruísta. Só não escrevo aqui a palavra “social” para evitar ser apedrejado pelos valentões da internet. Ops, escapou.

A gastronomia não pode compactuar com a intolerância. Não pode fazer vista grossa e ouvidos moucos para a escalada da barbárie. Não pode fingir que a cruzada anticivilizatória não tem nada a ver com ela.

Mas será mesmo que tem a ver? Porra, se tem!

O rodo das trevas só não arrastou ainda a gastronomia por uma razão: a irrelevância. Grande parte da população não compreende a alimentação como cultura –distorção que iniciativas como o Fartura buscam mitigar.

Os trevosos do poder estão entre aqueles que entendem a comida apenas como necessidade fisiológica. Entre aqueles que acham absurdo um colunista de cozinha escrever sobre política.

Quando eles perceberem que estão errados, vão virar a artilharia contra nós. Ou pior: quando não houver mais ninguém para ser detonado no campo cultural, chegará a nossa vez.

Mesmo que nossa vez nunca chegue, assistir de camarote a invasão visigoda configura poltronice.

Não dá mais para a gastronomia passar pano para gente de mentalidade medieval. Não interessa se o cara é um chef famosinho da TV. Não interessa se o cara faz o melhor sushi da galáxia.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais.  Acompanhe os posts do Instagram, do Facebook  e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo