GUILHERME GENESTRETI
CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Fazia 37 anos que Martin Scorsese não exibia um filme na programação oficial do Festival de Cannes, que o catapultou ao olimpo do cinema quando o laureou com a Palma de Ouro por “Taxi Driver” em 1976. Não era pequena, portanto, a expectativa para a estreia de seu “Killers of the Flower Moon”, que marcou o retorno do diretor à mostra desde “Depois de Horas”, de 1986.

O cineasta partiu de um livro-reportagem sobre uma série de assassinatos de indígenas no Oklahoma e o verteu para o seu cânone. Saiu com uma obra de mais de três horas que costura suas principais inquietações –o crime organizado e a derrocada moral de marginais que aspiram ao poder. Ex-coroinha de igreja, o artista ítalo-americano não deixou de lado discussões sobre culpa, redenção e danação.

Acompanhamos uma premissa curiosa. No início do século passado, os nativos da nação osage, no meio-oeste dos Estados Unidos, descobriram que as pradarias de sua reserva estavam assentadas sobre poços de petróleo. A exploração daqueles recursos tornou-os o povo com a maior renda per capita do mundo ao longo da década de 1910, como contam os créditos iniciais do filme, o que não demorou a despertar os olhos da elite branca local.

É nesse ambiente que encontramos o recém-chegado Ernest Burkhart, interpretado por Leonardo DiCaprio. Homem um tanto inepto, ele serviu na Primeira Guerra e agora busca um ganha-pão debaixo dos braços do tio rico, o fazendeiro William Hale, vivido por Robert De Niro. A relação entre o criador de gado e os indígenas enriquecidos da vizinhança está envolta numa cordialidade esquisita.

Por ali, conflitos de terra não raro terminam na bala, e homens brancos cortejam mulheres indígenas para ver se conseguem herdar uma fatia da fortuna. O abobalhado Burkhart logo se verá enlaçado com a nativa Mollie, interpretada por Lily Gladstone. É ao que parece uma atração sincera, mas que também agrada a Hale, como se verá adiante.

Assim, vemos transplantado para a América profunda o banho de sangue que o cineasta tanto nos acostumou a ver nas ruas de sua Nova York natal. De Niro e DiCaprio também formam a típica dinâmica scorsesiana de mestre-aprendiz regida pelos códigos do crime. Aqui, contudo, não falamos exatamente de mafiosos, mas de tipos que poderiam habitar um país como o Brasil, com seus conflitos agrários e a disputa por recursos em terras de povos originários.

“Killers of the Flower Moon” não deixa de ser um faroeste, mas scorsesiano. Tanto é assim que, em certo momento, aquele que será encarregado de impor a justiça é um ex-guarda de fronteira texano, vivido por Jesse Plemons, contratado para a então recém-criada agência federal de investigações. O livro que deu origem ao filme, “Assassinos da Lua das Flores”, do jornalista David Grann, já tratava do nascimento do FBI.

Embora não seja exatamente um diretor dado a críticas sociais escancaracadas, o cineasta faz aqui aquele que talvez seja o mais próximo do que já fez de um filme-denúncia, ainda que contado sob seus próprios termos.

Tampouco se mostra alheio ao fato de que há demandas hoje que não existiam lá atrás, em sua última vinda a Cannes. Isso significa pôr os indígenas retratados no centro da trama, e não como acessórios dela. Isso fica evidente com o tempo de tela dedicado à personagem Mollie, o interesse amoroso do personagem de Di Caprio.

Scorsese também optou por filmar no próprio lugar onde os crimes se deram, nos anos 1920, na reserva do povo osage no estado de Oklahoma. Descendentes dos nativos não só integraram departamentos técnicos como serviram de consultores do idioma e das tradições indígenas retratadas. A equipe criou cenários dentro do hangar de um aeroporto local, mas grande parte de suas locações tiveram por base os poços de escavação de petróleo que motivaram os assassinatos.

Foram mais de cem dias de filmagens, assoladas pela ameaça de tornados –Oklahoma fica no corredor americano dos furacões– e, sobretudo, pelo coronavírus à espreita. Em abril de 2021, quando começou a rodagem, a variante delta estava à solta. Outro desafio foi filmar em película, o que obrigou que todos os dias o material filmado tivesse que ser mandado a Los Angeles para a finalização.

O resultado ficou à altura dos melhores longas de Scorsese. Não que a história não tenha seus momentos arrastados, mas a nova investida do diretor num universo em que ele se sente à vontade para retratar, o dos gângsteres, se sai um tanto mais bem acabada do que em “O Irlandês”, seu último olhar sobre a corrupção moral da América. E um dos grandes motivos para isso talvez seja a profundidade dada ao personagem de DiCaprio, uma espécie de capataz torturado entre o amor sincero e a sede de ascensão social.

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