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Sob um sol brilhante, enquanto atravessava uma onda perfeita, o surfista Filipe Toledo batia no peito e gritava em direção à praia. Filipinho, de 27 anos, que cresceu a cerca de 400 quilômetros a oeste deste trecho de areia, tinha acabado de ganhar a segunda etapa da World Surf League (WSL) neste ano. A vitória em Saquarema, no Rio de Janeiro, cimentou seu lugar entre os maiores surfistas do mundo e ele dava um grande passo para vencer o circuito mundial. Em terra, milhares de torcedores faziam muito barulho com a sua conquista. Mais uma vez, os brasileiros celebravam o sucesso de um surfista do país e estavam sob o encanto do triunfo coletivo.

Há dez anos, uma vitória brasileira contra os melhores surfistas do mundo teria sido atípica. Por décadas, os brasileiros foram os azarões do mundo do surfe, com poucas estrelas. Mas a partir da década de 1990, uma combinação de política econômica, um rico conjunto de talentos, um sistema de concurso regional e dois homens que criaram um plano de longo prazo para produzir o primeiro campeão mundial do Brasils mudaram sua trajetória.

Filipe Toledo anunciou sua intenção de se tornar um surfista profissional aos seis anos. Ele sonhava não só em participar do circuito de elite, mas também em estar ao lado de nomes como o americano Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial, e o australiano Mick Fanning, tricampeão. Que Toledo tinha uma ambição tão grande foi um exagero. A ideia de que um brasileiro poderia não apenas se qualificar à disputa, mas realmente vencer – derrotando surfistas da Califórnia, Austrália e Havaí, que dominaram o esporte por décadas – parecia absurda.

Sim, o jovem surfista era talentoso. Como seus pares, ele começou a competir nos concursos regionais que ajudaram a geração atual a aprimorar suas habilidades e impulsionar uns aos outros a novos patamares. E ele estava vencendo, muito. Mas a distância entre vencer em casa contra outros novatos e vencer consistentemente contra os Slaters e Fannings do mundo ainda não tinha sido superada.

Os surfistas brasileiros simplesmente “não tinham tanta informação ou apoio”, disse Filipinho. “Eles ficaram tipo, ‘o que eu faço agora? Devo apenas treinar ou devo pegar o dinheiro que ganhei naquela etapa e gastá-lo, fazendo uma grande festa, ou investir em viagens?'”

Em dezembro de 2014, o impensável aconteceu: Gabriel Medina, de Maresias, aos 20 anos, tornou-se o primeiro brasileiro a conquistar o título mundial. Ele fez isso no último dia do Pipe Masters. A costa norte de Oahu entrou em erupção: centenas de pessoas correram para levar Medina ao pódio; alguns cantaram o hino brasileiro; outros ainda agitavam bandeiras do país.

Para Filipe Toledo e seus colegas, a vitória de Medina foi o início de uma mudança profunda no surfe. Depois de décadas tentando entrar no alto escalão do esporte, o Brasil se transformou de um azarão para um gigante global. Os brasileiros conquistaram o título mundial em 2015, 2018, 2019 e 2021. No ano passado, Ítalo Ferreira conquistou a primeira medalha de ouro do surfe em Olímpiadas entre os homens. E no final de junho, em Saquarema, as semifinais da etapa da WSL foram disputadas apenas por brasileiros.

Essa geração é tão dominante, que ganhou um apelido: Brazilian Storm (ou Tempestade Brasileira, em português). Esse sucesso, no entanto, foi tudo menos acidental. Foi o resultado de uma confluência de fatores: transformação política e econômica, além de um plano de décadas para produzir não apenas o primeiro campeão mundial brasileiro, mas também uma série de talentos para sustentá-lo. O plano funcionou. O surfe faz parte da cultura do Brasil há muito tempo. Em 1976, ano em que começou o circuito de surf moderno, o país teve seu primeiro gostinho da glória das ondas quando Pepe Lopes venceu o primeiro evento do campeonato, no Rio de Janeiro.

No entanto, o Brasil ainda estava sob uma ditadura. Sua combinação de uma economia fechada, alto custo de viagem e políticas protecionistas manteve o investimento estrangeiro fora e os possíveis surfistas profissionais dentro. Os recursos também eram escassos. Assim como os atletas de outros esportes, os surfistas precisam de treinadores, treinadores e equipamentos.

Mas, ao contrário de outros esportes, o “campo de jogo” do surfe está sempre mudando. Para serem competitivos na turnê mundial, os surfistas precisam de experiência em uma variedade de ondas em todo o mundo – particularmente as que quebram em lugares distantes como Havaí, Fiji, Taiti e Indonésia. Esse obstáculo não só contribuiu para uma lacuna de habilidades entre os surfistas brasileiros, mas também para um complexo de inferioridade coletiva.

Carlos Burle, referência de ondas grandes, disse que os melhores surfistas brasileiros precisavam simplesmente de dinheiro suficiente para viajar para as melhores ondas do mundo e ter a chance de serem competitivos. Não foi até o final dos anos 1980 que alguns nomes romperam a barreira e deram ao surfe brasileiro uma nova sensação de confiança. Fábio Gouveia, Flávio Padaratz e, posteriormente, o irmão de Flávio Neco e Victor Ribas foram destaques que não só fizeram o circuito de elite, como também foram competitivos.

Ainda assim, Gouveia, Padaratz e a legião de surfistas que eles inspiraram enfrentaram convulsões políticas e turbulências econômicas. Em 1985, a ditadura de 20 anos do Brasil chegou ao fim, inaugurando toda a promessa de uma jovem democracia. Em vez disso, o país foi lançado nas garras da inflação paralisante.

No início dos anos 1990, as coisas começaram a mudar. O presidente do Brasil de 1990 a 1992, Fernando Collor de Mello, convocou um grupo de acadêmicos para criar um conjunto de políticas estabilizadoras e, quando Filipe Toledo nasceu, em 1995, o Brasil tinha uma classe média próspera.

No início dos anos 2000, quando Filipinho e a futura Tempestade Brasileira surfavam em suas primeiras competições, os gastos com produtos e viagens (novas pranchas ou passagens aéreas para o Havaí) estavam em alta. As condições econômicas recém-férteis do Brasil começaram a atrair investimentos estrangeiros, incluindo a crescente indústria do surfe. Cuan Petersen, então diretor de marketing da marca Oakley, fez parte disso. Petersen se juntou a Luiz Campos, agente esportivo e gerente de marketing da Oakley que se tornou o padrinho do surfe brasileiro moderno.

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Seguindo a cartilha de como as empresas comercializavam para surfistas americanos e australianos, Campos e Petersen criaram um sistema para desenvolver e nutrir o talento do surfe brasileiro. Eles não queriam apenas cultivar surfistas que pudessem competir no cenário mundial. Eles planejavam produzir o primeiro campeão mundial brasileiro. No início dos anos 2000, seu programa, chamado Mar Azul, estava em funcionamento. Eles recrutaram jovens surfistas e forneceram preparadores físicos, treinadores, psicólogo, médico, aulas de inglês e media training.

As aspirações competitivas de uma nação se transformaram. Esperava-se que os surfistas brasileiros ocupassem os primeiros lugares, e também que os que estivessem em ascensão se juntassem a eles. Essas expectativas foram atendidas. E em contraste com os primeiros dias da Tempestade Brasileira, as expectativas para os surfistas em ascensão já são altas.

“Entendemos a fórmula agora”, disse Filipe Toledo, que terminou a temporada de 2021 em segundo lugar, atrás de Medina, que conquistou seu tricampeonato mundial.

Fonte: MSN