BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Defensora de pautas sobre igualdade de gênero e direitos para as mulheres, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) disse não acreditar em uma flexibilização da legislação sobre o aborto durante o governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O aborto é permitido hoje no Brasil apenas em três hipóteses: estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto (má formação no cérebro).

“Seria ilusão da minha parte achar que o governo Lula vai pautar o avanço na lei do aborto do Brasil, até pela própria aliança que precisou ser feita no segundo turno, para ter governabilidade, para construir um bloco com setores religiosos e fundamentalistas que vão ter isso como exigência”, disse à Folha.

Lula sinalizou em abril que o tema deveria ser tratado como questão de saúde pública. Porém, após a repercussão negativa da declaração em meio às eleições, voltou atrás e se posicionou contrariamente.

Na semana passada, a deputada e outras parlamentares foram chamadas de “assassinas de vidas inocentes” na Comissão dos Direitos da Mulher por serem contra o projeto de lei do Estatuto do Nascituro.

O texto transforma o aborto em crime hediondo e retira o direito da mulher, garantido por lei, de abortar mesmo em caso de estupro.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher foi estuprada a cada dez minutos no Brasil em 2021. Foram 56 mil casos com pessoas do gênero feminino como vítimas, incluindo vulneráveis.

O projeto voltou a ser discutido na quarta (7) e foi colocado em pauta na comissão, mas não foi votado graças a um pedido de vista de quatro deputados: Erika Kokay (PT-DF), Pastor Eurico (PL-PE), Vivi Reis (PSOL-PA) e Bomfim.

Na ocasião, ela disse que o projeto deveria ser batizado de “Estatuto do Estuprador” porque meninas teriam que levar adiante a gravidez gerada pelo criminoso sexual.

Hoje, 37% da população da América Latina e Caribe vive em países com direito legal da interrupção voluntária da gravidez ou em que a prática foi descriminalizada -há cinco anos, a proporção era de 3%.

O aborto deixou de ser crime, por exemplo, na Colômbia. A Argentina foi além e criou regulamentações para obrigar o sistema público de saúde a atender, de forma gratuita, mulheres que buscam o recurso.

PERGUNTA – Como a pauta do aborto vem sendo tratada no Congresso?

SÂMIA BOMFIM – É muito difícil pautar o tema com o viés da saúde pública, que é como deve ser tratado. Sempre é do ponto de vista religioso, moral, e está a serviço de alimentar a polarização entre os bolsonaristas e a esquerda. É difícil que saia desse limbo. Em outros países, quando conseguiram aprovar a legalização do aborto, foi principalmente quando essa chave foi virada, quando se tornou um tema de saúde, aí se discutiu nas comunidades, nos locais de trabalho, nos sindicatos.

P.- O debate agora foca o Estatuto do Nascituro. É mais um retrocesso?

SB- Sem dúvida é mais um passo para trás. A lei que permite aborto em caso de estupro é de 1940. No Brasil, mais de 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes, é desse público que estamos falando. Estamos falando também de mulheres que são estupradas dentro de casa pelos seus maridos, estamos falando de um retrocesso, de uma violência profunda acima de tudo. Obrigar uma mulher que foi estuprada a levar adiante uma gravidez é você considerar que o direito do estuprador de ser pai é maior que o da mulher violentada.

P.- Qual a posição do seu partido sobre esse projeto?

SB- O PSOL tem no seu programa a legalização do aborto. É assim que a gente se comporta no Congresso. Durante o governo Bolsonaro, não houve muita possibilidade de pautar o avanço na legislação porque está sendo um governo de retrocesso em todas as áreas, em especial nessa. Tiveram algumas portarias dificultando o acesso ao serviço de saúde, também teve o episódio da juíza que impediu o aborto de uma criança.

Foi um momento [governo Bolsonaro] de muitas trevas e a nossa atuação foi sempre de lutar contra o retrocesso, apoiar as mulheres e as crianças. Vejo a tentativa de pautar esse projeto [Estatuto do Nascituro] após eleição como uma tentativa de seguir o debate bolsonarista. Na prática, eles prometeram muito avançar com a agenda de costumes, mas não avançaram. Teve muita medida infralegal, né? Portaria, como eu disse. Mas os deputados fundamentalistas não tiveram essa vitória para estampar para a base, para falar que foram para cima das “abortistas” e que conseguiram derrotá-las.

P.- Em entrevista recente a sra. disse que o PSOL não vai compor a base do governo Lula. Acha que a discussão desse tema influencia nesse processo? Como o assunto vai ser conduzido pelo governo do PT?

SB- Os governos do PT nunca tiveram isso como prioridade. Acho que não será um governo que vai trabalhar para retroceder. [Mas] seria ilusão da minha parte achar que o governo Lula vai pautar o avanço na lei do aborto do Brasil, até pela própria aliança que precisou ser feita no segundo turno, para ter governabilidade, para construir um bloco com setores religiosos e fundamentalistas que vão ter isso como exigência.

Não ser da base não significa ser oposição, porque oposição são esses malucos bolsonaristas. Sabemos que não vai ser aprovada [lei que descriminaliza o aborto], mas vamos continuar gerando debates. Coisas que são aprovadas hoje há 30 anos talvez nem se pensasse em aprovar. Se não der o pontapé, nunca vai adiante.
Acho que isso não foi o centro da decisão do PSOL, mas é parte de um pacote. A gente costuma dizer que são dois temas gerais: um é o tema dos direitos humanos, que o PT defende, mas não em pautas espinhosas como essa. Outro é o aspecto econômico, sobre as concessões e pressões que o mercado vai fazer sobre a agenda.

P.- Esse tema é mal discutido no país?

SB- Sim. Ele poderia ser melhor debatido nas próprias faculdades de medicina e de enfermagem, que é por onde o assunto passa primordialmente. Tem um machismo muito enraizado na sociedade brasileira que nos impede de pensar o planejamento reprodutivo. Acho que também tem a ver com a lógica do mercado de trabalho do Brasil de superexploração -quanto mais filho uma mulher tem, mais gente para trabalhar, menos tempo para a mulher e mais justificativas para pagar salário mais baixo. É toda uma estrutura do machismo com o poder do capitalismo que faz com que o tema nem seja discutido. Também cabe às organizações dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais levarem esse tema como parte do programa, debater nos movimentos, nos bairros, na TV.

P.- Um deputado atrapalhou a sra. durante discurso na sessão que discutiu o Estatuto do Nascituro. O que achou?

SB- O lugar de fala dos homens nesse assunto é o de entender que a paternidade [ao contrário da maternidade] não é algo que necessariamente vai interferir, modificar a vida deles com uma profundidade imensa. Quando um deputado se torna pai ninguém fica sabendo, isso não é um assunto, não é um problema, não aparece na mesa de uma reunião, não interfere na agenda. Uma parlamentar mulher quando se torna mãe, isso vai interferir em tudo, desde o atraso do voo, da reunião, na vida. Os homens, os parlamentares deveriam entender isso, que eles podem ser pais presentes e ainda assim isso terá um impacto pequeníssimo na vida deles. Então, o lugar de falar dos homens é de entender, de escutar, de saber que a paternidade para o homem na sociedade brasileira não traz os encargos que a maternidade traz.

P.- Como agir diante desse tipo de parlamentar?

SB- Tem que ser à altura do que eles fazem. Tem muita violência política de gênero em todos os partidos de esquerda e direita, mas eu acho que os de esquerda, que defendem temas mais polêmicos, acabam sofrendo mais com isso. Entendo que haja muitas mulheres, e eu mesmo fui uma delas em muitas vezes, que se recolhem por constrangimento, raiva, medo ou desânimo. Aos poucos, fui criando a convicção de que a gente tem que responder. Se ele grita, a gente grita. Se ele bate na mesa, eu bato na mesa também. Quando a gente recua, eles crescem e é isso que eles querem. Querem ver a gente acuada e com medo. Eu estou aqui no Parlamento, ele não vai me bater em frente às câmeras. Mas, dentro de casa, as mulheres não têm esse privilégio, né? Infelizmente ainda é um privilégio.

RAIO-X

Sâmia Bomfim, 33
Deputada federal pelo PSOL-SP, foi vereadora de São Paulo entre 2016 e 2018. Natural de Presidente Prudente (SP), é formada em letras pela USP, onde também se tornou servidora. Tem como bandeiras a luta por igualdade de gênero e direitos para as mulheres.