• Paula Adamo Idoeta
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Civis afegãos tentando deixar o país no aeroporto de Cabul, em 18 de agosto

Crédito, Reuters

Civis afegãos tentando deixar o país no aeroporto de Cabul, em 18 de agosto; existe preocupação com pessoas que trabalharam para governo anterior e podem sofrer retaliação do Talebã

“Eu dei um grito quando vi o povo caindo do avião”, conta – em português com sotaque – o afegão de 33 anos, que hoje mora em Minas Gerais (e cujo sobrenome será omitido para evitar a identificação de sua família no Afeganistão).

Desde então, Zabi mal dorme e passa o dia atrás de notícias dos pais, irmãos, sobrinhos e de sua mulher e dois filhos pequenos.

Como parte da família dele trabalhou para o governo (agora substituído pelo Talebã) e para os militares americanos, que deixaram o país, Zabi e seus parentes passaram a temer represálias do grupo fundamentalista.

Em entrevista recente à BBC, um porta-voz do grupo afirmou que “não haverá vingança” contra ninguém no Afeganistão.

“Nós asseguramos ao povo do Afeganistão, especialmente na cidade de Cabul, que as suas propriedades, e suas vidas estarão seguras”, disse Suhail Sheheem à apresentadora Yalda Hakim.

Mas, segundo Zabi, “ninguém acredita na palavra do Talebã”.

“Durante o dia ele diz que não vai fazer nada com ninguém (em represália por terem colaborado com o governo anterior), mas à noite eles vão à casa das pessoas, tiram elas de lá e elas somem”, diz Zabi à BBC News Brasil.

O relato coincide com o da jornalista britânica Nadene Ghouri, que está ajudando a retirar pessoas sob risco do Afeganistão e recentemente disse à BBC que o grupo fundamentalista “está tentando encontrar qualquer pessoa com conexões com grupos internacionais ou estrangeiros”.

“Eles conseguem rastrear os telefones dessas pessoas, daí ligam para elas e dizem: ‘vamos te pegar'”, relatou Ghouri.

Nesta quinta-feira (19/8), um relatório feito para a ONU sobre a situação afegã confirmou que o Talebã está realizando uma caçada de porta em porta atrás de pessoas consideradas inimigas.

“Eles (Talebã) têm uma lista de indivíduos (a serem capturados) e logo nas primeiras horas que chegaram a Cabul iniciaram uma busca por antigos funcionários do governo – especialmente os de serviços de inteligência e de unidades especiais”, disse à BBC Christian Nellemann, do Centro Norueguês de Análises Globais, autor do relatório.

Fuga às pressas

Nos primeiros dias da retomada de poder pelo Talebã, a família de Zabi não saiu de casa. Na última quarta-feira, mandaram notícias dizendo que tentariam fugir com a ajuda de outros parentes. Depois, avisaram que estavam abrigados em uma grande cidade do país, em um esconderijo, até decidir seus próximos passos.

O contato tem sido feito por mensagens esporádicas, mas os parentes têm dito a Zabi que tem sido difícil obter conexão de internet no país.

Zabi quer tentar trazê-los para o Brasil ou mandá-los para outros países, mas se vê de mãos atadas. “A vida deles depende de eu tirar eles de lá”, afirma. No entanto, na ausência de uma embaixada brasileira em Cabul (a instituição consular do Brasil mais próxima fica no Paquistão) e de um canal estabelecido para a vinda de refugiados afegãos, “vou bater na porta de quem? Estou feito doido”, desabafa.

“Não quero ajuda do governo do Brasil para sustentar minha família – eu trabalho, eu ralo. Eu só quero que eles consigam visto. O problema é só tirar eles de lá, impedir que os matem.”

A BBC News Brasil consultou o Ministério da Justiça, responsável pelo Conare (Comitê Nacional de Refugiados), que informou que questões de visto são respondidas pelo Ministério de Relações Exteriores.

Esse, por sua vez, disse que “avalia, em coordenação com o Ministério da Justiça, a possibilidade de concessão de vistos humanitários para pessoas afetadas pela situação política no Afeganistão em termos semelhantes aos concedidos a haitianos e apátridas da República do Haiti e para as pessoas afetadas pelo conflito na Síria”.

“A Embaixada do Brasil em Islamabad, Paquistão, está à disposição para prestar informações a estrangeiros que tencionem ingressar em território brasileiro, bem como para expedir eventuais documentos e vistos necessários para a viagem, à luz do ordenamento jurídico existente”, diz a nota do Itamaraty. O link fornecido pelo Itamaraty para esse contato é: http://islamabade.itamaraty.gov.br/pt-br/.

Um caminho possível, segundo especialistas em migração, é tentar-se obter um visto temporário para fins de reunião familiar.

Zabi, diz, porém, que não tem conseguido contato com a embaixada em Islamabad até o momento.

A comunidade afegã é pequena por aqui e uma das menores entre o (relativamente pequeno) grupo de refugiados no Brasil. No ano passado, por exemplo, apenas 28 processos de solicitação de vistos de refugiados foram deferidos pelo governo brasileiro, segundo dados do Conare (para efeitos comparativos, foram mais de 24 mil solicitações deferidas para venezuelanos, nacionalidade com o maior número de refugiados no país na última década, seguida por sírios e congoleses).

Crédito, Reuters

Membro do Talebã em Cabul, em 16 de agosto; indivíduos e pessoas dizem que grupo fundamentalista tem perseguido inimigos, apesar de negar isso publicamente

Enquanto isso, na quinta-feira, os ministros de Relações Exteriores do G7 (grupo de países que inclui Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) pediram que o Talebã honre seu compromisso de permitir que pessoas possam deixar o Afeganistão de modo seguro.

Os ministros se disseram “profundamente preocupados pelos relatos de represálias violentas em partes do Afeganistão”.

Vida nova no Brasil

De volta à história de Zabi, foi também para fugir da perseguição do Talebã em curso em partes do Afeganistão que ele diz ter emigrado ao Brasil, em 2008, aos 20 anos, com um passaporte falso.

Aqui, recebeu status de refugiado até que, no ano passado, obteve a cidadania brasileira. Ele enviou seus documentos à reportagem, incluindo seu RG, tirado em 2020.

Primeiro, recomeçou a vida por aqui trabalhando em uma loja de roupas em São Paulo, até receber uma oferta de emprego em um abatedouro halal em Minas. Recentemente, transformou o dinheiro economizado em uma lanchonete própria.

Em 2013, quando seu status de refugiado mudou para o de residente no Brasil, ele pôde voltar a visitar o Afeganistão. Em uma das visitas, em 2018, diz que se casou com uma prima e teve dois filhos.

Zabi visitava seu país anualmente e passava cerca de três meses por lá. “Quando eu voltava, não tinha Talebã na capital (Cabul). Agora eu nunca mais vou poder voltar para lá na minha vida. Ninguém que mora fora vai poder voltar.”

Zabi também ajudava mensalmente a família com remessas financeiras ao Afeganistão. “Mando dinheiro todo mês, porque minha mãe tem problemas de rim e faz hemodiálise duas vezes por semana. Isso custa US$ 50, lá não se faz de graça. Se eu não pagar, ela vai morrer. Mas como eles vão receber dinheiro, se nem sistema de banco está funcionando mais?”

Em meio à fuga da família, Zabi se diz preocupado com o estado de saúde da mãe.

Apesar da surpresa com a retomada do poder por parte do Talebã, Zabi relata que sua família já via sinais crescentes de violência por parte do grupo.

“Antes de eles chegarem (ao poder), minha família já tinha recebido um papel com a marca do Talebã, eles diziam ‘um dia esse governo (aliado ao Ocidente) vai acabar e você vai ver’.”

Segundo ele, um de seus parentes sofreu um ataque por parte de insurgentes, em represália por ter trabalhado com os americanos, mas escapou com vida. Zabi mandou fotos à reportagem desse parente com um corte de faca na mão.

“Eu nunca imaginava que eles (Talebã) tomariam meu país de novo. Eles não deixam os meninos estudarem, eles não ajudam os seres humanos a viverem, não deixam médicos e engenheiros (trabalharem). Eles roubam e matam o povo.”

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

Fonte: BBC