GUARULHOS, SP (FOLHAPRESS) – Imagens do golpe militar ocorrido em Burkina Fasso em setembro evidenciam que o episódio ia além de mais uma desestabilização política. Nas ruas, dezenas de pessoas hasteavam bandeiras e cartazes em defesa de uma maior presença da Rússia.

O episódio tem como pano de fundo o alargamento da participação diplomática e militar de Moscou na África, notadamente na região do Sahel. Especialistas sugerem que o movimento decorre, em especial, do fracasso de nações ocidentais, como a França, em ajudar esses países a consolidarem democracias.

O caso burquinense parece seguir a cartilha até aqui observada: no início de dezembro, o regime local concedeu a licença de exploração de uma nova mina de ouro à empresa de mineração russa Nordgold. Duas semanas depois, a vizinha Gana acusou o país de pagar com a mina a contratação de mercenários russos membros do Grupo Wagner, empresa paramilitar privada que também atua na Guerra da Ucrânia.

Já assolado pelos impactos da emergência climática e da pobreza extrema, o Sahel passou a ser palco nos últimos anos do jihadismo. Paris, ligada a nações da região por laços coloniais, estabeleceu a operação Barkhane em 2014 para ajudar no combate ao terrorismo, mas, frente a pouco ou nenhum êxito, encerrou-a em novembro passado.

Em sua maioria autocracias e militarizados, os regimes locais precisam de ajuda externa para combater grupos radicais, mas demonstraram estar cansados das exigências feitas em contrapartida.

“Há tendência de atores russos não se concentrarem na construção de instituições independentes dentro dos Estados, em oposição ao que é feito por União Europeia e a ONU”, diz Zoë Gorman, que estuda o tema na Universidade de Princeton. “Russos não estão lá para dizer aos países africanos como devem administrar seus Estados; estão mais interessados em um arranjo puramente econômico e militar.”

O anseio desses países vai ao encontro do apetite de Moscou, que busca consolidar na África e na Ásia campos de influência que contrabalanceiem o distanciamento da Europa.

Angelo Segrillo, professor de história da USP e autor de “Os Russos”, diz que o governo de Vladimir Putin passou a olhar mais para o continente após a crise gerada pela anexação da península da Crimeia, em 2014. “É uma forma de a Rússia fugir do cerco e do isolamento diplomático por parte do Ocidente e conseguir aliados em outros lugares do mundo.”

O movimento ficou mais evidente em 2019, quando o líder russo recebeu em Sochi, às margens do mar Negro, cerca de 40 líderes africanos, na primeira cúpula Rússia-África.

Do lado russo, além de apoio diplomático em fóruns internacionais e acesso a recursos como jazidas, há ainda a expansão da influência militar. O fator, porém, irradiou preocupação ao longo de 2022.

Em abril, ONGs cobraram internacionalmente respostas do regime do Mali após a morte de 200 a 300 pessoas em uma ação contra radicais islâmicos na região central do país. A principal suspeita é de que o Grupo Wagner, contratado pelo regime, tenha participado da operação.

O aumento da violação de direitos humanos em ações encabeçadas pelos regimes locais tem sido uma das principais consequências da maior presença russa, diz Gorman. “Tendências semelhantes ocorreram em outros conflitos africanos com atividade mercenária, como na República Centro-Africana, na Líbia e em Moçambique.”

O cenário decorre da violência dos regimes locais, mas também da impunidade que circunda a atuação de empresas paramilitares privadas como a Wagner, coibidas pelo direito internacional mas, na prática, atuantes em diversas regiões. Soma-se também o fato de que muitas vezes o grupo é contratado por elites locais. “Eles não têm de prestar contas à população, mas sim à pessoa que assina seu contrato.”

Nações como os EUA reiteradamente criticam a atuação dos mercenários, ainda que grupos do tipo tenham atuado ao lado dos americanos em conflitos como a Guerra do Iraque.

Em comunicado recente, o Departamento de Estado acusou o líder do Grupo Wagner, o oligarca Ievgeni Prigojin, de cooptar movimentos em defesa da soberania africana para espalhar desinformação.

“O pan-africanismo é um movimento legítimo, mas Prigojin cooptou ativistas para promover os interesses russos no continente; são influenciadores que defendem que Moscou coloque a mão em assuntos africanos e moldam opiniões favoráveis aos objetivos políticos do Kremlin.”

Outrora às margens da agenda pública, Prigojin começou a fazer, ao longo do ano, diversos discursos sobre o tema. Sobre o golpe em Burkina Fasso, por exemplo, teceu elogios à ação dos militares: “O povo estava sob o jugo dos colonialistas, que apoiavam gangues de bandidos e causavam muita dor à população local.”