• Rafael Barifouse
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Há 47 minutos

Mulher orando em evento evangélico

Crédito, Getty Images

‘A mulher se fortalece, porque a distância entre ela e o homem diminui’, diz Juliano Spyer

O Brasil vai virar um país evangélico. Algumas previsões apontam que será no começo da próxima década, outras, um pouco mais tarde, mas elas concordam que vai acontecer.

Os evangélicos – que eram 5% da população em 1970 e são um terço hoje – caminham para se tornar maioria no “maior país católico do mundo”.

É algo sem precedentes e paralelo no mundo, diz o historiador e antropólogo Juliano Spyer, autor de O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial, 2020).

O livro já foi recomendado publicamente por algumas personalidades e políticos de esquerda. Frei Betto, o deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ) e o ex-presidente Lula (PT) foram alguns deles. Caetano Veloso assina o prefácio.

“A maneira com que eles abraçaram o livro foi no caminho de se dar conta de que existe muito mais do que Edir Macedo, [Marco] Feliciano e [Silas] Malafaia”, afirma Spyer.

“Que, geralmente, a gente trata os evangélicos como espantalhos, de forma tão rude, tão desinformada, que só serve para bater, sem dar a essas pessoas a condição de seres inteligentes que fazem opções inteligentes, apenas por serem pobres e terem pouco estudo.”

Spyer diz que o Brasil precisa resolver esse preconceito com os evangélicos e que muita gente não está preparada para ter essa conversa – mas vai ter que fazer isso.

Juliano Spyer fala em evento

Crédito, Juliano Spyer

Juliano Spyer diz que convivência com evangélicos derrubou preconceitos comuns em relação a essa parcela da população

O livro foi um dos resultados do seu doutorado em Antropologia na University College London, no Reino Unido, em que ele pesquisou o uso das mídias sociais pelos mais pobres.

Spyer viveu um ano e meio em uma comunidade na periferia de Salvador e esteve pela primeira vez tão próximo de tantos evangélicos por tanto tempo.

Ele diz que essa convivência iluminou os preconceitos que tinha e que ele vê também em pessoas ao seu redor.

O pesquisador afirma que seu propósito com o livro – em que ele entrelaça sua experiência pessoal com pesquisas sobre o tema – é ajudar a rever esses preconceitos.

Um deles, por exemplo, é o de que as igrejas sempre tornam a mulher evangélica submissa ao homem, diz Spyer.

Outro é que esse novo Brasil evangélico vai ser “uma ditadura miliciana fundamentalista”, como alguns imaginam.

A seguir, ele explica por quê.

BBC News Brasil – As previsões apontam que o Brasil se tornará protestante. Em que medida esse Brasil vai ser diferente do que a gente viu até agora?

Juliano Spyer – Há uma narrativa [a respeito disso] muito associada à série O Conto da Aia, em que o Brasil se tornaria uma ditadura miliciana fundamentalista baseada em uma relação bastante tensa de censura e de controle a partir de valores cristãos. Mas notei algo diferente em minha experiência.

Quando fazia doutorado na Inglaterra, tinha quatro casais de amigos que vinham de famílias evangélicas pobres cujos pais não tinham estudado ou tinham estudado tardiamente. Desses quatro casais, três tinham deixado de participar mais intensamente da igreja ou deixado definitivamente da religião. Tinham inclusive uma perspectiva crítica.

Então, uma contranarrativa possível é que [para as futuras gerações] a igreja se torna algo de que elas podem participar de uma forma mais branda, mais intelectualizada, mais tranquila, levando aí, portanto, a um caminho menos radical e fundamentalista.

BBC News Brasil – De que forma isso ocorreria?

Spyer – Um dos primeiros e mais importantes estudos da Sociologia foi produzido por Max Weber. Ele associa religião e capitalismo e aponta em que medida o individualismo do culto protestante, que é fundamentado no quanto o indivíduo é capaz de chegar à salvação via sua relação individual e direta com Deus, intermediada pela Bíblia.

Então, a participação na igreja evangélica cria um ambiente de disciplina em relação ao consumo de substâncias, de álcool, de drogas, uma disciplina matrimonial, em relação aos estudos, que levam essas pessoas a evoluir na direção das camadas médias.

Não sou só eu que estou falando isso. É a literatura que diz que uma das principais consequências do protestantismo, inclusive o pentecostal, é produzir ascensão socioeconômica. Uma mudança de classe social que expõe a próxima geração a um mundo muito mais laico, secular, dos ambientes universitários.

Pessoas com camisa em que se lê 'deus é 10'

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Evangélicos devem se tornar maioria da população na próxima década

BBC News Brasil – Seu trabalho tem um um propósito declarado de desfazer a visão estereotipada dos evangélicos. Pode, então, esclarecer de quem estamos falando?

Spyer – Se a gente olhar para os quinhentos anos de protestantismo, uma maneira prática de separar os grupos é entre o protestantismo histórico – aquele que vem do [Martinho] Lutero até o início do século vinte, com igrejas batistas, metodistas, presbiteriana, entre outras, que surgiram mais próximo da Reforma Protestante – e o pentecostal.

A partir do século 20, há esse fenômeno importante do pentecostalismo, que é o único ramo do protestantismo criado por um afrodescendente, o pastor chamado William Seymour. Não há na história do cristianismo nenhum criador de uma nova denominação, uma nova teologia, de origem africana. Ele não fundou uma igreja. Fundou uma maneira de apresentar sua mensagem que dialoga com o presente, algo muito particular do pentecostalismo.

O pentecostalismo tem uma característica curiosa. Não foi disseminado por missões, com a igreja pagando para pessoas irem para certos lugares para ensinar sua teologia, mas de baixo para cima, com pessoas tocadas por aquela nova teologia indo para lugares distantes para criar suas igrejas. Tanto que as primeiras igrejas pentecostais do Brasil surgem dois anos depois do movimento original e foram se espalhando muito rapidamente dentro dos espaços da pobreza e menos visíveis da sociedade brasileira.

Em parte por conta disso, há uma surpresa quando o pentecostalismo emerge. As pessoas olham para o lado e falam: “De onde vem isso? O que é que aconteceu? Onde que essas pessoas estavam?”.

BBC News Brasil – Por que há essa surpresa?

Spyer – As camadas médias e altas do Brasil têm uma visão fora de foco do Brasil popular e ignoram esse fenômeno [evangélico]. Isso é problemático, porque generaliza a imagem de um grupo de brasileiros com imensa importância cultural, econômica e política. Ao se dirigir a esse brasileiro de maneira desinformada e preconceituosa, isso estimula uma polarização que, entre outras consequências, levou à eleição do presidente Jair Bolsonaro.

A professora Claudia Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, usa o termo “apartheid”, que foi o regime de segregação racial na África do Sul, para falar sobre essa falta de contato entre o Brasil pobre e o das camadas médias e altas. E é incrível como eles são próximos. Uma rua separa o Brasil da Bélgica do Brasil do Haiti.

As únicas situações geralmente de contato entre esses dois grupos é de manhã, tomando café enquanto a empregada lava a louça, ou no momento do assalto. E, dentro deste outro mundo, o cristianismo evangélico é muito maior e mais interessante e cumpre muito mais funções do que geralmente nós entendemos.

Mulher diante de igreja evangélica

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As igrejas evangélicas pentecostais cresceram rapidamente no Brasil e no mundo

BBC News Brasil – O que explica a crescente adesão às igrejas evangélicas no Brasil?

Spyer – Não vou tentar aqui explicar o que é o mistério, se é um efeito psicológico, se é realmente a presença de Deus, isso não cabe dentro da Ciência Social e, geralmente, é visto como desrespeitoso pelo evangélico.

Mas, além do aspecto espiritual, geralmente, a adesão está relacionada a viver uma situação degradante, de violência doméstica ou de desemprego, de alcoolismo, de dependência química. Quando a pessoa chega na igreja, ela está no esgoto da vida social, se sentindo fragilizada e precisa encontrar um lugar. Então, ela senta lá no fundo e começa a ouvir que ela vale a pena, que Deus tem uma história boa para a vida dela, e, dentro desse convívio, ela acaba se convertendo.

O cristianismo evangélico está no Brasil muito associado a uma solução para as pessoas mais pobres e vulneráveis, formando, por exemplo, redes de ajuda mútua, para encontrar um advogado, uma clínica de tratamento, um médico especializado. A igreja cumpre a função de Estado de bem-estar social em lugares onde a vida é muito difícil.

O protestantismo traz transformações econômicas, em termos de qualidade de vida, muito em função do disciplinamento que a conversão produz. A conversão é resultado da pessoa ter vivido situações muito difíceis na vida, e a consequência é uma prosperidade. Eu vi isso acontecer muito rapidamente, para minha primeira surpresa.

A primeira consequência é que o homem abdica de uma série de coisas, do álcool, das drogas, do tabaco, e a violência física praticamente desaparece da vida do casal. A relação melhora, aumenta a confiança, a mulher pode trabalhar, tem menos a expectativa de ela ficar em casa e do homem ser livre para ir para o bar, para festas. Ele geralmente abdica dos relacionamentos paralelos. O dinheiro que era gasto com cerveja, aventuras, passa a ser investido na família. A casa fica melhor. O filho é incentivado a estudar.

Uma segunda consequência, que considero mais importante, é uma prosperidade no sentido de dignidade, que passa por um aumento do autorrespeito e da autoestima, pela ideia de que você não é pior nem melhor do que ninguém. “Você pode ser quem você quiser e tem direito a todos os benefícios que as pessoas de outras classes sociais têm.”

Então, existem muitos motivos que trazem essas pessoas para o cristianismo evangélico, e deveríamos levar isso em conta para ter um olhar um pouco mais respeitoso e generoso com esse fenômeno.

BBC News Brasil – Um efeito curioso que seu livro aponta e que contraria o senso comum é que a conversão evangélica empodera as mulheres. Como isso acontece?

Spyer – A perspectiva feminista das classes médias e altas não é capaz de entender como a igreja evangélica pode e representa muitas vezes um aumento no poder da mulher. Geralmente, a maneira que a mulher destas classes médias e altas é estimulada a reagir a situações de abuso moral ou físico é pelo rompimento de relações. Mas a mulher evangélica é muitas vezes estimulada a manter os vínculos familiares, que são muito mais importantes para sua sobrevivência do que em outras classes.

Uma anedota que ouvi com frequência e que faz sentido é que quando o homem entra para a igreja e a mulher não é da igreja, o casamento termina. O homem fica na igreja, e a mulher vai achar outro, porque ela não quer abrir mão da vida que ela leva. Quando a mulher entra na igreja, ela geralmente consegue levar gradualmente as outras pessoas da família para a igreja.

A conversão das mulheres geralmente é relacionada a problemas coletivos. O marido que espanca ou é alcoólatra, o filho que está envolvido com o tráfico… A conversão do homem é individual. “Estou aqui porque tenho um problema.” A mulher vai pra igreja para resolver o problema dos outros, e essas outras pessoas acabam indo junto com ela. Os filhos, um irmão, uma irmã, os sogros e, em algum momento, o marido.

Quando o homem está na igreja, ele encontra ali um grupo e relacionamentos que o estimulam a gastar menos, a manter a abstinência, a evitar drogas, a romper relações extramaritais. Nesse sentido, a mulher se fortalece, porque a distância entre ela e o homem diminui. Então, não é que o poder da mulher aumenta. É que o poder do homem diminui. O empoderamento da mulher vem da restrição de possibilidades do homem.

Além disso, ela se torna o centro da vida espiritual da família e pode assumir cargos de responsabilidade. Apesar de mulheres pastoras ainda serem pouco comuns, muitas viajam o Brasil pregando a palavra de Deus. Então, a igreja cria novas possibilidades para que essa mulher ganhe respeito e se torne uma líder, permitindo e estimulando que ela assuma posições de destaque.

Pessoas orando

Crédito, Juliano Spyer

Igreja ajuda onde o Estado falha, diz antropólogo

BBC News Brasil – De onde vem o preconceito com os evangélicos?

Spyer – Nossos preconceitos têm a ver com modos de ver o mundo. Para quem cresce dentro de um ambiente secular, a igreja pode ser uma besteira, uma idiotice. Algo ruim. Mas, em um outro nível, é um preconceito de classe. Não é só com a religiosidade. O pobre é considerado problemático por alguns porque ele é barulhento demais, sexualizado [demais], violento demais, religioso demais.

Tem essa patologização do pobre, principalmente quando ele está perto. Quando ele está longe, é bacana. Ele tem cultura. É o ribeirinho, o quilombola… Mas o pobre próximo é rejeitado. Há uma visão de que, se a pessoa não teve acesso a uma boa educação, não sabe votar, precisa ser educada para isso, para pensar a vida do lado de cá.

A maior parte das pessoas que aderem ao protestantismo, principalmente pentecostal, são pretas, pardas, pobres, periféricas e do sexo feminino, ou seja, são, de fato, o grupo mais marginalizado da sociedade brasileira. Mas essas pessoas não querem se submeter à opinião dos outros. Como uma antropóloga americana fala, o protestante pentecostal não quer ser intermediado, não quer que digam o que ele é e quais são seus direitos. Então, ele é ousado, é uma pessoa “que não sabe seu lugar”.

Aí, imagina, além de pobre e ignorante, ele quer se meter com política? Quer comprar um carro? Quer viajar para a Disney? Falas assim explicitam esse preconceito de classe absurdo que aparece com frequência em relação ao cristão, principalmente o pentecostal, quando ele busca uma prosperidade que não é diferente da prosperidade que as pessoas que o criticam vivem, como ter uma casa, um carro, morar perto [do trabalho], ter plano de saúde, botar os filhos em uma escola privada.

O Brasil é, curiosamente, preconceituoso, e a gente se acostumou por muitos anos a viver dentro dessa desigualdade a ponto de não aceitar muitas vezes que esses espaços sejam reduzidos. E esses protestantes não querem mais esperar, não querem mais que façam por eles, eles estão fazendo, pelo empreendedorismo de necessidade e de fato, buscando educação. Eles sentem que é responsabilidade deles fazer isso, que ninguém vai fazer, porque até agora ninguém fez.

BBC News Brasil – Caetano Veloso assina o prefácio do seu livro, que já foi indicado por Marcelo Freixo, Lula, frei Betto. Por que personalidades e políticos de esquerda têm recomendado a leitura do seu trabalho?

Spyer – Vou falar especialmente do Caetano Veloso. Não somos amigos e não tivemos contato antes de eu enviar o livro para ele. Queria uma frase dele e, dois meses depois, recebi um longo email com uma série de observações e críticas. Fiquei impressionado, porque ele leu de forma muito cuidadosa.

O Caetano é uma pessoa que se move para além do óbvio. Ele fala no prefácio da quantidade de pessoas que falam sobre este assunto de maneira muito preconceituosa, taxando essas pessoas como idiotas e ignorantes ou como fanáticas e mercadores da fé. O Caetano historicamente combate esse tipo de visão arrogante das camadas médias.

Acho que, de certa forma, as outras pessoas – posso falar pelo frei Betto, com quem eu passei a ter contato, e o Marcelo Freixo -, que a maneira com que eles abraçaram o livro foi no caminho de se dar conta de que existe muito mais nisso do que Edir Macedo, [Marco] Feliciano e [Silas] Malafaia. Que geralmente a gente trata os evangélicos como se eles fossem espantalhos, de uma forma tão rude, tão desinformada, que só serve para bater, sem dar a essas pessoas a condição de seres inteligentes que fazem opções inteligentes, apenas por serem pobres e terem pouco estudo.

Essas pessoas demonstraram interesse pelo livro vendo ali um problema importante que o Brasil vai precisar resolver, que é o preconceito de classe com um grupo que hoje representa um terço do país. É importante perceber o quanto a gente pode ganhar aliando forças e tendo um diálogo mais interessante e menos preconceituoso com essas pessoas.

Bolsonaro em evento evangélico

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Bolsonaro não é evangélico, mas tem alianças importantes com líderes evangélicos, avalia Spyer

BBC News Brasil – Por que o Brasil precisa resolver esse preconceito em relação aos evangélicos?

Spyer – Em primeiro lugar, porque, ao tratar os evangélicos de forma desrespeitosa, arrogante, desinformada e com uma série de críticas por serem religiosos, estamos abrindo mão do diálogo com pessoas que têm valores conservadores, não só do ponto de vista moral, mas econômico, e que são contrários aos nossos.

Em uma conversa recente com o pastor Henrique Vieira, perguntei como a gente faz para negociar essa pauta moral com o evangélico comum que acha que a família tradicional é uma questão importante e que sua liberdade religiosa é desrespeitada pelas “pessoas mais esclarecidas”.

Ele me deu duas recomendações muito lúcidas. A primeira: quando a esquerda se relacionar com essas pessoas, precisa tirar os manuais de baixo do braço e ouvir mais do que falar. A segunda é fazer um esforço para entrar de novo na discussão sobre termos que a esquerda tratou de forma muito desastrada: família, amor e vida.

Se você quer dialogar com essas pessoas, precisa aceitar que, mesmo discordando do que pensam, elas têm o direito de pensar dessa forma. E tentar propor outros enquadramentos para essas discussões. Por exemplo, dentro do diálogo sobre a vida, em vez de reforçar que a mulher tem direito à escolha do aborto, mostrar que mulheres morrem porque o aborto é ilegal. A mesma coisa em relação à legalização da maconha: dizer que, por conta da proibição, pessoas morrem vítimas de determinadas situações ligadas à polícia.

O Henrique Vieira relatou uma conversa que teve sobre homoafetividade: “O que você prefere: que uma pessoa gay seja assassinada ou ver essa pessoa beijando outra pessoa do mesmo sexo?”. Percebe como você cria uma possibilidade de diálogo?

BBC News Brasil – Qual será a consequência caso esse preconceito persista?

Spyer – Em última instância, será manter os evangélicos cativados ou sendo pressionados dentro das suas igrejas a aderirem a pautas que geralmente não são do interesse deles por conta da defesa das pautas morais.

É muito comum dentro dos círculos intelectualizados comparar os evangélicos a fascistas bolsonaristas, sendo que, no meu entendimento, a partir da convivência com uma série de evangélicos, há muitos que não têm identificação com nosso atual presidente. Mas eles se sentem constrangidos em dizer isso dentro das igrejas, porque o presidente, de forma muito hábil, costurou relações com as lideranças.

Bolsonaro é um peso para o evangélico comum. Primeiro, porque ele fala de uma maneira muito violenta e desrespeitosa. Você não vai ver evangélico falando dessa forma, usando palavrões, uma forma intimidadora que não cabe ali dentro [da igreja]. Segundo, Bolsonaro não é evangélico, e a Bíblia certamente não é um assunto de interesse dele. O interesse dele pela religião é muito menor do que o interesse que tem, por exemplo, em relação à questão do policiamento. Terceiro, porque a mulher evangélica de periferia tem um imenso problema com o tema da facilitação do acesso às armas de fogo. Ela já vê armas de fogo demais nos bairros dela.

Agora, se você não demonstra respeito pelas convicções, visões, entendimentos que essas pessoas têm em relação às pautas morais, você entrega elas todas [de bandeja] que serão de uma forma muito efusiva abraçadas pelo outro lado.

Muitas vezes, essa polarização é promovida dentro da igreja, quando dizem que a esquerda é antifamília, é comunista, o que é uma grande bobagem porque as mesmas pessoas que falam isso participaram dos governos de esquerda do Lula e governo Dilma. Elas estão falando da boca pAra fora, por conveniência, mas constrangendo evangélicos que não se identificam com Bolsonaro a votar em candidatos que representam esse pensamento ou pelo menos, o que é mais importante, a se calar e não expressar suas críticas.

André Mendonça discursa

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Bolsonaro mostrou lealdade aos evangélicos ao indicar André Mendonça ao STF, afirma o pesquisador

BBC News Brasil – Seu livro cita episódios em que políticos de esquerda cometeram erros ao tratar da religião em eleições. A esquerda aprendeu a lição?

Spyer – Os políticos e os partidos políticos entenderam o recado. Quem está disputando [uma eleição] sabe que precisa dialogar com um terço do país e disputar esses votos. O que me preocupa é o eleitor, que, com frequência, especialmente nas redes, demonstra ainda muita insensibilidade. Sempre que uma entrevista como essa é publicada, há muito desrespeito.

A professora Jacqueline Teixeira, da USP, é uma antropóloga que estuda mulheres na Igreja Universal e acompanhou nas campanhas eleitorais em 2018 as conversas dentro das redes de mulheres evangélicas da Universal. Ela percebeu o esforço que essas mulheres estavam fazendo para que a igreja não abraçasse oficialmente a candidatura do Bolsonaro.

Esse esforço veio abaixo quando o candidato Fernando Haddad chamou o Edir Macedo de charlatão. Isso deu munição para as outras pessoas que eram a favor do Bolsonaro constrangessem essas mulheres, falando “a gente vai votar no cara que é contra a gente?”.

BBC News Brasil – Caso o ex-presidente Lula seja candidato, ele cometeria um erro assim?

Spyer – Certamente, não. Primeiro, porque o ex-presidente Lula, ao contrário do Haddad, não vem das camadas médias da sociedade. Ele é muito mais identificado com o brasileiro que migrou do sertão do que o Haddad, então, é uma pessoa muito mais aberta ao tema da religião e que vivencia a questão da religião do que o Haddad – que, aliás, é uma pessoa por quem tenho muito respeito. Mas, em relação a esse aspecto, ele cometeu um erro que o Lula, caso ele se torne candidato, não repetirá.

Além disso, Lula é menos associado aos temas identitários do que Haddad. Acredito, que, neste momento, ele vai dar mais ênfase às pautas econômicas e menos à moral e aos costumes. Mas Lula vai ter que, de alguma forma, convencer esse grupo de que ele não é contra as igrejas e que, dentro do histórico das esquerdas, não vai se posicionar de forma arrogante em relação a causas e temas que são importantes para os evangélicos.

Lula discursando

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Voto evangélico está dividido entre Lula e Bolsonaro, apontam pesquisas

BBC News Brasil – Na última eleição, o voto evangélico foi majoritariamente para Bolsonaro e, para muitos, isso foi decisivo para sua eleição. Pesquisas apontam que esse eleitorado agora está dividido entre ele e Lula e, em alguns levantamentos, Lula está à frente. O que aconteceu?

Spyer – O evangélico é predominantemente pobre. A maior parte do cristianismo evangélico cresce nas periferias urbanas, por conta da ausência do Estado, então, não só o evangélico, mas o brasileiro pobre entende que foi beneficiado pelas políticas de combate à pobreza dos governos petistas e que viveu seu melhor naquele período.

O Lula é visto pelos pobres brasileiros como uma pessoa que, pela primeira vez na história do Brasil, governou pensando neles. A gente ouvia com muita frequência nas pesquisas da campanha de 2018 pessoas falando: “Minha mãe fez faculdade, que era o sonho da vida dela”, “essa casa e esses móveis eu comprei durante os governos do PT”, então, num primeiro momento, essa lembrança da vida mais próspera que beneficia Lula.

Particularmente, o cristão entende a prosperidade como elemento importante de expressão da fé, ou seja, estar trabalhando, ter uma casa melhor, comprar uma moto, ter filho na escola particular são uma evidência de que ele está se comportando bem.

Em um segundo momento, tenho a impressão que essas pesquisas refletem que Bolsonaro não é a expressão mais desejada por eles enquanto líder. Então, esses evangélicos, mesmo calados entre seus pares, na intimidade da urna ou das pesquisas, manifestam essa rejeição.

A vantagem de Bolsonaro é que ele tem falado de forma aberta e explícita em favor das pautas morais que são caras para os evangélicos e em favor da liberdade religiosa. É um grande mérito dele. Ele conseguiu indicar um ministro evangélico, bancou essa candidatura com o apoio da bancada evangélica. Com isso, ele demonstrou para o evangélico pobre uma fidelidade, uma atenção com esse eleitor que não se sente representado, por exemplo, no Supremo [Tribunal Federal] em relação aos seus valores e visões de mundo.

Mas a disputa não está ganha. No espaço da esquerda intelectualizada, progressista, há o problema de achar que as pessoas que abraçaram a candidatura de Lula rejeitaram a candidatura Bolsonaro. Uma hipótese minha é que tem muitas pessoas que diriam que se, um não estiver na disputa, votam no outro.

BBC News Brasil – Ou seja, a disputa pelo voto evangélico ainda está em aberto?

Spyer – Não só está em aberto como está em aberto antes das campanhas começarem. Ainda tem muita propaganda boca a boca, muito uso dessa infraestrutura de comunicação via WhatsApp, tem muita água para rolar.

Tenho visto nos meus pares um alívio, achando que o Bolsonaro não será o próximo presidente do Brasil. É a mesma sensação de segurança que se tinha em janeiro de 2018 em relação ao candidato azarão que não tinha tempo de TV. Agora, esse candidato é presidente da República, tem a máquina pública a favor dele e costurou muitas relações com esses líderes evangélicos midiáticos que falam em defesa dele. Então, ele não é carta fora do baralho.

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Fonte: BBC