Logo após os primeiros sinais de amenização da calamidade, o entusiasmo do povo brasileiro para sair às ruas e desfrutar da sobrevivência, numa espécie de catarse coletiva, era enorme. No início de 1919, depois de um ano marcado pelas mortes da gripe espanhola e pelos resquícios da Primeira Guerra Mundial, aconteceu aquele que entrou para a história como o “Carnaval dos carnavais”.

As semelhanças entre as situações chamam a atenção. Também agora, a expectativa dos foliões é grande, já que o último bloquinho saiu há 20 meses. Mas ainda há muitas dúvidas sobre a realização da festa. Ao menos duas dezenas de cidades já cancelaram o Carnaval, enquanto outras, como Rio de Janeiro e São Paulo, ainda aguardam os desdobramentos da quarta onda de Covid-19 e os impactos da variante Ômicron.

Com menos informações científicas, em 1919 a decisão foi pela festa – uma das maiores que se viu. Naquele Carnaval nasceu o Cordão do Bola Preta, um dos principais blocos do Rio de Janeiro. Grupos de pessoas vestidas com trajes tipicamente espanhóis lotavam as ruas: as mulheres de longas saias vermelhas e leques e os homens de jaquetas bordadas e chapéus.

Comerciantes, que até então vinham mantendo as portas fechadas em quarentena, esgotaram os estoques de lança-perfume, fantasias e perucas (uma das principais sequelas da gripe espanhola era a perda dos cabelos), compensando a ausência de lucro do período anterior. Marchinhas de Carnaval eram criadas em meio aos blocos, acerca do contexto pandêmico.

“Quem não morreu de espanhola,quem dela pôde escaparNão dá mais tratos à bola,toca a rir, toca a brincar (…)”

Era um misto de euforia, alívio, urgência de liberdade e um exorcismo do terror e da angústia vivida durante todo o primeiro ano da pandemia, além do aspecto irônico implícito nas marchas, relativo à dor de milhares de mortes.

A grande festa não se limitava ao território do Rio de Janeiro. “Foi um fenômeno que aconteceu em outras cidades também. Tudo indica que houve uma maior liberdade nos costumes e atos. Havia, inclusive, a perspectiva do final da guerra. Sem dúvidas, as pessoas festejavam o fato de estarem vivas”, esclarece Ricardo Augusto dos Santos, pesquisador da Fiocruz e doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Aquela celebração, no entanto, não media suas próprias consequências. Afinal, a gripe espanhola só chegou ao fim em abril de 1920. Era um momento de extrema fragilidade sanitária. “Não havia estrutura para algo daquela dimensão. Inclusive, os intelectuais médicos reivindicavam a criação de um órgão nacional de saúde somente em 1920, muito após o Carnaval dos carnavais: o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP)”, comenta Santos.

O pesquisador conta que quase todo o combate à gripe foi realizado por ações isoladas do governo federal, como associações filantrópicas e associações de operários e médicos. Além disso, hospitais de campanha e enfermarias provisórias foram montadas. “A ajuda era bem-vinda, mas pouca, infelizmente. Existem, ainda, muitas perguntas a respeito do Carnaval de 1919. Por exemplo: durante o Carnaval, quantos ainda estavam doentes? Quantos adoeceram naqueles dias?”, pontua Santos.

1919 x 2022: semelhanças e diferenças

É interessante ressaltar que a gripe espanhola foi caracterizada como a maior pandemia do século XX porque a velocidade de disseminação do vírus não estava relacionada somente à guerra (trânsito de soldados, lotação de quartéis e más condições nos frontes e nas trincheiras), mas também à 2ª Revolução Industrial. A doença foi denominada como “a primeira pandemia moderna”, chegando a infectar um terço da população mundial e a dizimar 5%.

“Hoje, em razão da tecnologia, a acessibilidade entre fronteiras é ainda maior. Naquela época, viagens de navios de três a quatro meses eram necessárias para que as pessoas chegassem da Europa até o Brasil, por exemplo”, comenta o pesquisador Diego Xavier, da Fiocruz.

A facilidade dos transportes e a prática do turismo torna a situação ainda mais propícia e rápida para a disseminação de doença. O Brasil está ainda mais suscetível, por ser destino de muitos estrangeiros durante o Carnaval e, agora, preferido por visitantes que buscam países que não exigem carteira de vacinação.

“O que os dados indicam é que apesar dos riscos daquele Carnaval, ele foi muito menor do que seria um Carnaval agora, em 2022. Nós não sabemos ainda como será o impacto das modificações do novo coronavírus”, complementa Ricardo Augusto dos Santos.

Em 1919, o Rio de Janeiro tinha 1 milhão de habitantes. Hoje, são mais de 6 milhões. “São épocas diferentes. Além do fato de que naquele ano nós não recebemos turistas de outras cidades ou países, em 1919 não havia dispensa do trabalho durante todos os dias de Carnaval, enquanto hoje, é o maior feriado do ano no Brasil. Qual será o impacto disso?”, questiona o historiador.

Por outro lado, agora há mais medidas de proteção comprovadamente eficazes, além do notável avanço da ciência, que foi capaz de criar vacinas contra a Covid-19 em apenas um ano. É o que aponta Luiz Antônio da Silva Teixeira, mestre em saúde coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Fiocruz.

“É possível observar, no entanto, o mesmo negacionismo por parte da população entre 1919 e 2021. A reação social à gripe espanhola se escreve num conjunto de epidemias e outras tragédias anteriormente desconhecidas, sobre as quais não existiam explicações científicas a respeito: o negacionismo é também uma reação de medo, desespero e falta de informação”, explica.

Qualquer pandemia deixa um rastro de sequelas a longo prazo. “As consequências permanecem posteriormente na sociedade. Não se volta à realidade anterior à catástrofe instaurada. Nessa lógica, é importante calcular os cuidados necessários considerando todos os cenários possíveis, e com muita cautela”, diz Teixeira.

Por fim, Ricardo Augusto dos Santos lança uma reflexão sobre o possível Carnaval de 2022: “Sinceramente, comemorar o quê?”

Fonte: CNN Brasil