• Luiz Antônio Araujo
  • De Porto Alegre para a BBC News Brasil
30 março 2022, 15:10 -03

Atualizado Há 8 minutos

Soldado do Batalhão Azov

Crédito, EPA

O Batalhão Azov é um grupo paramilitar nacionalista de extrema direita na Ucrânia

A Ucrânia contemporânea tem uma história intrincada na qual impérios, guerras e invasões desempenharam um papel central. Partes desse passado têm sido invocadas pelos dois lados na guerra iniciada em 24 de fevereiro pela invasão russa do país.

A fim de iluminar os principais aspectos desse acidentado processo de formação nacional, a BBC News Brasil ouviu John-Paul Himka, professor aposentado de História da Universidade de Alberta, em Edmonton, Canadá.

De origem ucraniana pelo lado paterno e italiana pelo materno, Himka é autor de obras cruciais sobre história da Ucrânia, entre as quais se destaca Moradores de vilarejos da Galícia e o movimento nacional ucraniano no século 19 (Palgrave Macmillan, 1988; sendo Galícia uma região histórica entre a Ucrânia e a Polônia).

Ele destaca que, apesar de a extrema direita ter crescido por ali, o apoio a esses grupos não é pleno entre a população ucraniana e tem níveis semelhantes ao observado em outros lugares da Europa e América do Norte.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista com Himka:

BBC News Brasil – O presidente russo, Vladimir Putin, tem sido acusado de usar a história e a memória da Ucrânia com propósitos políticos. O que o sr. pensa sobre isso?

John-Paul Himka – Putin expressou seus pontos de vista sobre a história ucraniana mais claramente em duas ocasiões: em seu ensaio “Sobre a unidade de russos e ucranianos”, de 12 de julho de 2021, e num discurso de 21 de fevereiro de 2022. Quem tem familiaridade com a história do nacionalismo russo reconhece que ele recorreu pesadamente a seu arsenal de argumentos.

No seu ensaio, ele focou na precariedade da identidade ucraniana. Como um povo submerso e sem Estado, os ucranianos tiveram um caminho difícil até a nacionalidade. No Império Russo no século 19, a elite ucraniana étnica estava totalmente integrada à cultura russa. Ucranianos educados usavam a língua russa nos locais de trabalho, na “sociedade” (obshchestvo), nas instituições acadêmicas e na imprensa.

Eles tiveram que fazer uma escolha, de fato uma escolha arriscada, para se identificar com a vasta maioria da população, os camponeses, que falavam ucraniano mas estavam tolhidos pela servidão, pelas dívidas e pela falta de educação. Na Rússia imperial, a publicação em língua ucraniana era severamente restringida, e a educação nessa língua, completamente proibida. A luta pela consciência nacional e pela criação de instituições ucranianas não foi totalmente bem-sucedida antes de a revolução irromper em 1917.

Nos territórios habitados por ucranianos da monarquia Habsburgo, ucranianos educados – a maioria, clérigos católicos de rito grego e seus filhos – envolveram-se em um debate sobre sua identidade nacional.

Alguns pensavam que eram uma nacionalidade separada, que chamavam russínios ou rutênios. Outros – e eles eram dominantes nos anos 1860-1970 – argumentaram que eram o ramo mais ocidental do povo russo. Mas finalmente, nos anos 1880 e 1890, a identidade ucraniana predominou. Na monarquia Habsburgo, os ucranianos puderam ter educação em sua própria língua, tiveram acesso a uma florescente imprensa periódica em ucraniano e fundaram numerosas organizações unindo os letrados e os camponeses.

John-Paul Himka, professor aposentado de História da Universidade de Alberta, Edmonton, Canadá

Crédito, Arquivo Pessoal

Para historiador John-Paul Himka, a tolerância da Ucrânia com extrema-direita não teve apoio de todos os ucranianos e também ocorre na Europa e na América do Norte

BBC News Brasil – Putin tenta explorar essa trajetória sinuosa para negar o direito dos ucranianos ao seu próprio Estado?

Himka – A visão da história ucraniana de Putin enfatiza todos os momentos de contingência na formação nacional, como se fossem algo absolutamente único dos ucranianos. Mas historiadores profissionais há muito estão convencidos de que a contingência teve um papel crucial na formação nacional no século 19. Afinal, não havia Alemanha em 1850, nem Itália. Não havia Letônia ou Estônia antes da Primeira Guerra Mundial. Cada nação que emergiu teve seus momentos de talvez sim, talvez não. Da Áustria ao Zimbábue, a artificialidade e a contingência foram a regra mais do que a exceção na criação das nações modernas.

BBC News Brasil – O que o sr. pensa sobre o propósito declarado de Putin de promover uma suposta “desnazificação” da Ucrânia?

Himka – Em relação à específica denúncia de Putin da necessidade de “desnazificar” a Ucrânia, muitos pontos precisam ser levantados. Em primeiro lugar, como um historiador do Holocausto, sei o que foi o regime nazista. Não guarda nenhuma semelhança com o governo da Ucrânia. Na Ucrânia, todos os cidadãos têm sido iguais perante a lei, sejam ucranianos, russos, judeus ou tártaros. Não há Führer na Ucrânia; em vez disso, a Ucrânia elegeu seis presidentes com políticas muito diferentes. A imprensa ucraniana livre tem representado o espectro inteiro de opinião.

Entre a Ucrânia e a Rússia, é a última que é mais próxima em estrutura do Terceiro Reich. E ouçamos a linguagem de Putin. No dia 16 de março de 2022, ele disse: “O povo russo sempre será capaz de distinguir os verdadeiros patriotas da escória e dos traidores e cuspi-los como a uma mosca que acidentalmente voa para dentro de sua boca”. Isso é linguajar fascista. Putin diz que houve um genocídio contra russos na Ucrânia. Novamente, como historiador do Holocausto, tenho uma boa ideia do que é genocídio. E nada remotamente parecido com isso teve lugar na Ucrânia.

BBC News Brasil – E quanto aos laços dos governos ucranianos com a extrema direita?

Himka – Putin tem sido capaz de capitalizar certas políticas irrefletidas da Ucrânia contemporânea. Uma delas é a glorificação da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (ONU). Dois presidentes ucranianos, Viktor Yuschenko (2005-2010) e Petro Poroshenko (2014-2019), declararam os nacionalistas heróis. Epígonos de extrema direita dos nacionalistas participaram de várias manifestações em Maidan, em Kiev, incluindo a Euromaidan de 2014. O slogan dos nacionalistas, “Glória à Ucrânia” (Slava Ukraina), tornou-se amplamente dominante em nível oficial na Ucrânia.

O problema como a heroicização dos nacionalistas é que eles participaram ativamente do Holocausto e assassinaram dezenas de milhares de poloneses e outras minorias nacionais na Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial. O atual presidente, Volodymyr Zelensky, não promoveu o culto da ONU, mas também não tomou medidas para erradicá-lo. À parte essa problemática política de memória, a outra política irrefletida é a tolerância de militares neofascistas e grupos paramilitares como o Batalhão Azov. Devo enfatizar que nem todos os ucranianos concordam com essas políticas, e muitos na intelectualidade criticam-nas ativamente.

Mas precisamos contextualizar. O Batalhão Azov foi criado na guerra contra a primeira invasão russa de 2014. A Ucrânia tinha negligenciado seu exército e sua marinha durante anos antes disso. O Azov estava à mão, e mostrou-se muito efetivo em batalha. Foi na realidade financiado em primeiro lugar por um político e empresário poderoso de origem judaica, Ihor Kolomoisky. Hoje, o Azov é uma importante força anti-russa na batalha brutal por Mariupol, onde muitos civis ucranianos foram mortos e estão privados de necessidades básicas como comida, água, remédios, calefação e abrigo.

Vladimir Putin

Crédito, Reuters

Historiador questiona argumentos apresentados por Putin sobre história da Ucrânia

Igualmente, temos de olhar o contexto global mais amplo da tolerância da Ucrânia em relação à extrema direita. Eu vivo no Canadá. Recentemente, os postos de fronteira e a capital foram cercados pelo movimento de extrema direita dos comboios. Nosso vizinho ao Sul, os Estados Unidos, elegeram um presidente, Donald Trump, que é tolerante com supremacistas brancos e neonazistas e cujos apoiadores tentaram um golpe de Estado quando ele perdeu a eleição seguinte.

A Frente Nacional de Marine Le Pen é a principal oposição na França. Putin apoiou Trump e Le Pen. A Alemanha tem sua Alternativa pela Alemanha, a Grécia, sua Aurora Dourada, a Hungria, o seu Jobbik. Muitos países ocidentais têm um movimento neofascista significativo. O ponto é: a Ucrânia não é nada excepcional, e Putin terá muita guerra pela frente se quiser “desnazificar” a América do Norte e a Europa.

BBC News Brasil – A cobertura midiática tem se concentrado nas regiões ocidentais onde o sentimento antirrusso é mais visível, como Lviv e, até certo ponto, Kiev. O que se pode dizer sobre as outras 20 “Ucrânias”?

Himka – A Ucrânia é um país diversificado com uma colcha de retalhos de experiências históricas. Há uma longa lista de Estados que dominaram os vários territórios que compõem a Ucrânia independente. No período de 1700 a 1950 esses Estados foram: Áustria, Tchecoslováquia, Alemanha (ocupações durante as duas guerras mundiais), Hungria, o Khanato da Crimeia, os tártaros Nogay, Polônia (incluindo a Comunidade Polono-lituana), Romênia e Rússia (imperial e bolchevique). Se recuamos na história podemos encontrar godos, vikings e mongóis. Em maior ou menor medida, cada um desses regimes históricos deixou sua marca nas práticas culturais e linguísticas, na mentalidade e na cultura política da região onde uma vez se estabeleceram.

Mas a divisão mais saliente na Ucrânia moderna é entre a Galícia, no oeste do país, e o Sul e o Leste. Como parte da monarquia constitucional austríaca, o movimento ucraniano pôde se desenvolver livre e rapidamente, de modo que em 1900 a consciência nacional ucraniana estava amplamente difundida entre todas as classes sociais. A rivalidade nacional com os poloneses, cujos proprietários de terras controlavam a província da Galícia, afiou o movimento ucraniano. Os ucranianos da Galícia ganharam experiência política e aprenderam como fundar organizações.

No entreguerras, a Galícia foi incorporada à Polônia, uma situação que os ucranianos da Galícia consideraram frustrante. Mas mesmo à medida que a Polônia tornou-se mais autoritária, ainda foi possível para os ucranianos manter partidos políticos, apresentar candidatos às eleições, publicar uma imprensa periódica diversificada e interessante em língua ucraniana, desenvolver um movimento florescente de cooperativas agrícolas e apoiar uma rede privada de escolas ucranianas. Foi lá também que a ONU emergiu em 1929.

Grande Fome na Ucrânia

Crédito, Diözesanarchiv Wien/BA Innitzer

Sob Stalin, fome que custou as vidas de cerca de 4 milhões de pessoas na Ucrânia

BBC News Brasil – A Galícia teve, porém, um curto período soviético em razão do Pacto Ribentropp-Molotov, antes da invasão alemã da União Soviética.

Himka – Durante a Segunda Guerra Mundial, a região foi primeiramente incorporada à Ucrânia soviética. Os soviéticos deportaram para o Gulag centenas de milhares de integrantes da antiga elite polonesa, assim como judeus (tanto fugitivos da zona alemã como sionistas) e ativistas ucranianos. Imediatamente após o ataque surpresa dos alemães à União Soviética em 22 de junho de 1941, a polícia secreta soviética, o NKVD, prendeu milhares de nacionalistas ucranianos suspeitos, isto é, membros e simpatizantes da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (ONU).

Incapazes de evacuar os prisioneiros antes da chegada dos alemães, o NKVD assassinou cerca de 10 mil deles. Quando os alemães entraram em Lviv, em 30 de junho de 1941, as prisões estavam em chamas e partes da cidade chegavam a cheirar mal com os cadáveres em decomposição. Logo a Galícia foi incorporada como Distrikt Galizien à porção da Polônia conhecida como Governo Geral. Como resultado do interlúdio soviético de 1939-1941, o único movimento político ucraniano capaz de sobreviver foi a Organização dos Nacionalistas Ucranianos, que tinha funcionado na clandestinidade desde sua fundação.

A organização ajudou os alemães a estabelecer a administração civil, incluindo forças policiais, e também os ajudou em suas políticas mortais em relação aos judeus. Os ucranianos étnicos no Distrikt Galizien não sofreram tanto como outras populações em áreas ocupadas pelos nazistas. Os alemães usaram-nos como contrapeso aos poloneses. Os ucranianos no Distrikt foram brindados com oportunidades ocupacionais, e o movimento cooperativo ucraniano floresceu na ausência de empresas judaicas rivais.

Depois da guerra, a Organização dos Nacionalistas Ucranianos lançou uma insurgência contra a volta dos soviéticos. A insurgência sobreviveu até o final dos anos 1940, mas foi esmagada por deportações em massa e várias outras formas de brutalidade. Mesmo depois que os soviéticos impuseram sua versão de ordem, havia sinais indicando que os ucranianos da Galícia não tinham internalizado a mentalidade soviética.

Os soviéticos aboliram a igreja católica de rito grego da Ucrânia em 1946, mas ela sobreviveu tanto clandestinamente como de forma disfarçada na Igreja Ortodoxa Russa até ser legalizada em 1989. Além disso, embora muitos ucranianos orientais russófonos e russos tenham se mudado para Lviv, a cidade permaneceu falante de ucraniano.

BBC News Brasil – E quanto ao Sul e ao Leste do país?

Himka – A história foi mais simples e muito diferente no Sul e no Leste do que é hoje a Ucrânia. O Sul esteve sob o domínio do Khanato da Crimeia e dos tártaros Nogay até que a Rússia o conquistou, no final do século 18. A imperatriz Catarina 2ª convidou colonos para se restabelecer na área depois que muitos habitantes nativos tinham sido alvo de limpeza étnica. Alemães, gregos, búlgaros, sérvios e outros estabeleceram-se no Sul. Ucranianos e russos também o fizeram. Em relação ao Leste, partes haviam estado sob domínio russo desde o século 17. Em razão de grandes reservas de ferro e carvão, a região industrializou-se no século 19. Muitos russos foram para lá trabalhar nas fábricas e nas minas. Havia certamente uma consciência ucraniana nessas regiões: Kharkiv, em particular, teve um grande papel no desenvolvimento da ideia nacional ucraniana no início do século 19. Mesmo assim, todas as cidades e áreas industriais do Sul e do Leste eram russófonas, e a autocracia czarista reprimiu manifestações do movimento ucraniano.

O Sul e o Leste foram também incorporados ao Estado soviético desde o começo. A Ucrânia soviética viu uma breve mas brilhante renascença nacional nos anos 1920, mas por volta de 1930 acadêmicos e personalidades culturais ucranianos começaram a ser presos. De fato, no irromper da Segunda Guerra Mundial, a vasta maioria da elite ucraniana na União Soviética tinha sido morta. Stálin foi também responsável por uma fome fabricada que custou as vidas de cerca de 4 milhões de pessoas na Ucrânia. Ninguém ousou desafiá-lo. O governo implementou um programa sistemático de russificação da Ucrânia soviética.

BBC News Brasil – Qual foi o impacto da invasão alemã nessas áreas?

Himka – Na Segunda Guerra Mundial, o Leste e o Sul foram expostos a tratamento duro pelos ocupantes alemães. Jovens ucranianos foram capturados aos milhões e enviados à Alemanha para trabalho escravo. Prisioneiros de guerra foram assassinados em massa. Cidades sofreram com a falta de comida. Suspeitos de simpatia pelos soviéticos e famílias de guerrilheiros vermelhos foram executados. No momento em que o Exército Vermelho começou a reconquistar essas áreas, no verão de 1943, as pessoas saudavam os soldados como libertadores.

BBC News Brasil – Como essa diversidade de experiências se reflete na atualidade?

Himkka – Em suma, a Galícia é ucranófona e nacionalista e sofreu muito mais com os soviéticos do que com os alemães. O Sul e o Leste são russófonos, sovietizados em termos de mentalidade e cultuam como sagrada a memória da Grande Guerra Patriótica contra a Alemanha fascista e seus aliados. Essas diferenças em perspectiva manifestam-se em cada eleição na Ucrânia independente e em todas as pesquisas sociológicas de opinião.

De qualquer maneira, cerca de 30 anos de independência ucraniana fizeram algo para mitigar a divisão. O ponto crucial de mudança chegou em 2014, quando a Rússia ocupou a Península da Crimeia e apoiou movimentos separatistas nas partes orientais das regiões de Donetsk e Luhansk na região industrial do Donbass. A agressão russa de 2014 teve dois efeitos nos perfis regionais da Ucrânia.

Um foi que partes da Ucrânia que tinham as maiores minorias russas e os maiores percentuais de russófonos estavam agora excluídas da política ucraniana, incapazes de votar em eleições e enviar representantes ao Parlamento. Seria hoje muito difícil para um partido pró-russo, como o Partido das Regiões de Viktor Yanukovych, conquistar a Presidência ou a maioria parlamentar.

O outro efeito foi na mentalidade do resto do Leste e do Sul que permaneceu na Ucrânia. Lá, os ucranianos sentem-se pouco atraídos pelos regimes brutais que a Rússia instalou no Donbass oriental e reagiram à agressão russa com aversão. Caracteristicamente, pesquisas de opinião mostraram que antes da invasão de 2014, o apoio à Otan (aliança militar ocidental) na Ucrânia era baixo, de menos de 20%.

Depois da invasão, o apoio à Otan saltou para mais de 40%. Desde que a Rússia lançou sua nova invasão em fevereiro de 2022, ficou claro que toda a Ucrânia – a Galícia, o Sul, o Leste – está lutando arduamente pela preservação da independência. Putin conseguiu unir o país como nunca antes, mas a um custo terrível para os cidadãos da Ucrânia.

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Fonte: BBC