“As defensoras sempre ficavam bravas com ela”, lembra Sissi aos risos. “Nos perguntávamos: ‘Como vamos parar essa garota?’”

Dos milhares de treinos que a ex-jogadora da seleção brasileira fez ao longo de seus 13 anos de carreira, um se destaca. No ano 2000, quando Sissi jogava no Vasco da Gama, a equipe sub-15 foi convocada para um jogo-treino contra a equipe adulta. Entre eles estava uma pequena avançada de nome Marta Viera da Silva, a quem inicialmente ninguém deu muita atenção – até que foi preciso.

“Naquela época, eu já sabia que ela tinha um dom e era difícil [enfrentá-la]”, disse Sissi à CNN. “Toda vez que fazíamos treinos com contato, as meninas tinham que pará-la, indo duro com ela. Ela era muito especial”, relembra.

“Marta era tão boa com a bola. Era quase como se, perto do gol, ela sempre esperasse a zaga vir para ela fazer uma jogada diferente e deixar uma zagueira no chão”, ela se diverte. “Isso nos fez rir. Ela era muito especial, muito rápida, muito criativa, mas foi difícil. Foi difícil para nós.”

Como atacante, Sissi diz que ficou “feliz” por nunca ter que defender uma Marta de 15 anos, já que os zagueiros “sempre ficavam chateados” depois de enfrentá-la. Ela ri novamente com a memória.

Se defender não era o forte de Sissi, atacar certamente era. Na Copa do Mundo de 1999, nos Estados Unidos, Sissi ganhou a Chuteira de Ouro pela artilharia do torneio. Sua impressionante cobrança de falta contra a Nigéria nas quartas de final é um dos maiores gols de todos os tempos na Copa do Mundo.

Aquele torneio definiria sua carreira e Sissi continua sendo uma figura muito querida no Brasil por suas façanhas com a amarelinha, mesmo sob a pressão de jogar com a famosa camisa 10, de Pelé.

Sissi estava no auge quando a jovem Marta surpreender a ela e suas companheiras. Ela diz que que ficou evidente muito rapidamente – talvez já naquele primeiro treino – que a adolescente se tornaria uma estrela da Seleção Brasileira Feminina. ‘Fala-se do Pelé, fala-se da Marta’, pontua.

Mas mesmo que Sissi previsse o caminho de Marta para a seleção, com certeza não poderia imaginar que a garotinha daquele treino chegaria a alcançar tudo o que conquistou. Marta, agora com 37 anos e jogando sua sexta e última Copa do Mundo, é considerada por muitos – talvez até pela maioria – a maior jogadora de futebol de todos os tempos.

Sem precedentes

Marta venceu o prêmio de Jogador do Ano da FIFA seis vezes – incluindo cinco anos consecutivos de 2006 a 2010 e é a maior artilheira de todos os tempos do Brasil, masculino ou feminino, com 115 gols. Nenhuma outra jogadora ganhou mais de três vezes

Marta ganhou o prêmio de Melhor Jogadora do Ano da FIFA seis vezes, sem precedentes. – John Walton/PA Images/Getty Images

Ela também conquistou a Liga dos Campeões da Europa, a Copa Libertadores e foi premiada com a Chuteira de Ouro e a Bola de Ouro como artilheira e melhor jogadora da Copa do Mundo de 2007.

Em 2019, Marta se tornou o primeiro jogador ou jogadora da história a marcar em cinco Copas do Mundo e seus 17 gols em Copas do Mundo são um recorde histórico no futebol masculino e feminino.

A única conquista que falta em um currículo brilhante é um título importante com a Seleção. Três vezes Marta esteve agonizantemente perto da glória com o Brasil,. Quando o Brasil perdeu a final da Copa do Mundo de 2007 para a Alemanha, e sofrendo duas derrotas na disputa pela medalha de ouro olímpica.

Sissi diz que Marta significou “tudo” para as Canarinhas durante seus 21 anos de carreira internacional, levando o time a novos patamares e se tornando uma referência para pessoas de todo o país. “Ela é um ícone”, diz Sissi. “Marta tem sido uma mentora para muitas crianças.”

“Na minha geração, não tínhamos jogadoras para admirar, então agora ter jogadoras como ela, especialmente com o que ela conquistou e quem ela se tornou, é muito importante. Você já viu o quanto o jogo mudou no Brasil. Agora, as pessoas podem dizer: ‘Quero ser como a Marta’”.

“Temos de a aproveitar ao máximo… porque acho que não vai haver outra Marta, com certeza. Ela já causou um grande impacto, não só no Brasil, mas acho que no mundo todo. Todo mundo sabe quem ela é, então tenho muito orgulho de ser brasileira. Muito orgulhosa.”

Jogadora ‘completa’

Quando Marta começou a emergir como uma verdadeira estrela do futebol feminino no início e meados dos anos 2000, a seleção masculina do Brasil estava repleta de talentos superlativos: Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo, Cafu, Roberto Carlos e Dida foram apenas alguns dos nomes de classe mundial que conquistaram a Copa do Mundo em 2002.

Marta certamente se encaixava no estereótipo do futebolista brasileiro da época: um toque de veludo, um passador habilidoso e tecnicamente próximo da perfeição. Ela é tão hábil dar passes para gols quanto em marcá-los, uma jogadora genuinamente versátil, com pouquíssimas fraquezas em seu jogo.

Embora Marta tenha marcado incontáveis gols memoráveis ao longo de sua ilustre carreira, aquele que talvez sintetiza seu jogo melhor do que qualquer outro veio durante a goleada por 4 a 0 sobre a Seleção Feminina dos Estados Unidos, que estava invicta há 51 jogos – quase três anos – indo para nas semifinais da Copa do Mundo de 2007.

A mistura de ingenuidade instintiva, equilíbrio, controle e implacabilidade na frente do gol foi uma maravilha de se assistir e esse domínio completo da bola e do corpo é uma visão rara no futebol.

Juca Kfouri, comentarista esportivo, diz que o jogo de Marta era inigualável no futebol brasileiro, mesmo em uma época em que o país era especialmente abençoado com alguns dos maiores jogadores masculinos de sua história. “Houve um momento no Brasil da primeira década do século 21 em que, apesar de o Brasil ter jogadores como Ronaldo Fenômeno e Ronaldinho Gaúcho, Marta era a pessoa nascida no Brasil que tinha o melhor controle de todos os fundamentos do jogo”, Kfouri disse à CNN.

“Todos: passe, chute, cabeceio, visão de jogo, chute de esquerda e de direita. Ela era mais completa como jogadora de futebol do que gênios como os dois Ronaldos ou Rivaldo, que também eram eleitos os melhores jogadores do mundo na época”, avalia ele.

Marta disputou sua primeira Copa do Mundo em 2003. Austrália e Nova Zelândia 2023 é sua sexta e última Copa do Mundo Feminina. – Doug Pensinger/Getty Images

“A gente acha difícil comparar o Pelé com qualquer outro jogador de futebol, independente do gênero, mas acho que a comparação da Marta com os Ronaldos, com o Rivaldo se encaixa nesse aspecto. Se você olhar para o domínio de Marta sobre os fundamentos do jogo, ela estava mais perto da perfeição nesse aspecto do que aqueles jogadores”.

Mas até mesmo Pelé gostou das comparações. Ele apelidou Marta de “Pelé de saias”.

Mudando o jogo

No entanto, o impacto de Marta não se limitou apenas ao campo. Na verdade, ela aproveitou suas façanhas em campo para ajudar a criar melhores condições para as jogadoras de futebol feminino em todo o país.

De 1941 a 1979, era ilegal para as mulheres jogar futebol no Brasil. Uma lei que Sissi ignorou quando criança para brincar com os meninos nas ruas de sua cidade natal. Na época em que Marta emergia como uma das maiores promessas do mundo, o futebol feminino no Brasil ainda era incipiente, após anos de negligência.

O perfil de Marta como a melhor jogadora do mundo durante grande parte de sua carreira obrigou as autoridades do país a levar o futebol feminino mais a sério, investindo tempo e recursos tanto na seleção quanto no campeonato nacional.

Sissi diz que a “força de falar” de Marta foi fundamental para que o futebol feminino no Brasil tivesse a estrutura que tem hoje. “Isso é algo pelo qual ela ainda está lutando”, diz Sissi.

A marta mania no Brasil talvez tenha atingido seu auge durante os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro. Enquanto a seleção masculina, comandada por Neymar, sofria no torneio, a seleção feminina e sua capitã Marta começaram bem.

Ambos usam o famoso número 10 do Brasil, mas os fãs rapidamente perceberam que apenas a camisa de Neymar estava facilmente disponível para compra nas lojas brasileiras. E isso levou inúmeros torcedores a resolverem o problema com as próprias mãos, riscando o nome de Neymar e escrevendo ‘Marta’ a caneta nas costas das camisas.

Ainda naquele ano, um projeto foi aprovado em Alagoas, estado natal de Marta, para mudar o nome do ‘Estádio Rei Pelé’ para ‘Estádio Rainha Marta’, mas a mudança ainda não foi sancionada.

Depois que o Brasil foi eliminado da Copa do Mundo de 2019, Marta – usando batom vermelho escuro, que ela disse ser para mostrar sua disposição de “deixar sangue no campo” – fez um discurso apaixonado para as câmeras. Ela pediu às jovens no Brasil que assumissem o manto, dizendo que não haverá “uma Marta para sempre”.

Marta usou batom vermelho escuro na Copa do Mundo de 2019. – Paul Currie/FIFA/Getty Images

“O futebol feminino depende de você para sobreviver. Pense nisso, valorize mais. Chorar no começo para sorrir no final”, disse Marta.

Kfouri diz que momentos como esse exemplificam como Marta carregou nas costas a “fragilidade do futebol feminino no Brasil” quase sozinha ao longo de sua carreira. “Marta é algo fenomenal”, acrescenta Kfouri. “Porque você pensa em alguém que foi eleito o melhor jogador do mundo seis vezes, em um país onde o futebol feminino nunca teve apoio e, pelo contrário, por muitos anos foi proibido que as mulheres jogassem futebol. É espantoso que existisse uma Marta no Brasil.”

Marta foi fundamental para a existência de um time de futebol brasileiro e para que ele acabasse tendo o reconhecimento que tem hoje. Se não fosse Marta, provavelmente o futebol feminino no Brasil ainda seria uma coisa muito incipiente. “Ela foi e é uma figura muito valiosa, não tenho dúvidas em dizer isso, como atleta e como cidadã”, conclui.


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Este conteúdo foi criado originalmente em espanhol.

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Fonte: CNN Brasil