• Leandro Machado
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Há 17 minutos

Mão fechando as grades de uma prisão

Crédito, Getty Images

No último dia 5, um pedido de um jovem que acabara de receber a notícia de que seria solto da cadeia surpreendeu quem participava da audiência no Tribunal de Justiça de Minas Gerais: ele queria continuar detido por algumas horas para conseguir comer. “Antes de eu ir embora, vocês não poderiam me deixar aqui só para eu jantar e não passar mal na rua? Meu corpo está muito fraco”, pediu.

A história ganhou repercussão nas redes sociais a partir de um tuíte do promotor do caso, Luciano Sotero Santiago. Defensores e promotores levantaram um debate sobre a relação entre pobreza, aumento da fome no Brasil e o sistema de justiça criminal.

Por um lado, alguns disseram que a história ilustra a crise econômica e o aumento da miséria no Brasil. Ao todo, 33 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente no país, segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, um estudo produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

Por outro, houve críticas ao encarceramento em massa e ao sistema de Justiça — nessa visão, ambos ajudam a perpetuar o estado de violência e de criminalização da pobreza. Um dos usuários, por exemplo, citou o salário dos membros da audiência (juiz, promotor e defensor público), todos acima dos R$ 20 mil.

Em contraponto, algumas pessoas também criticaram a Justiça por ter soltado uma pessoa que praticou um delito violento, pedindo que Sotero levasse o jovem “para jantar em casa”.

“Estou há anos na estrada, e já vi muita coisa em audiências. Mas essa história me surpreendeu. Normalmente, as pessoas querem sair correndo da prisão, mas esse rapaz foi tão espontâneo e tão sincero ao falar da fome que chocou todo mundo na audiência”, diz Luciano Sotero Santiago, promotor que pediu a soltura.

A juíza Elâine Freitas acatou o pedido, e disse que o jovem poderia ficar na penitenciária para jantar enquanto os trâmites burocráticos da soltura eram resolvidos.

‘A maior preocupação era a fome’

O servente de pedreiro João (nome fictício), negro, de 20 anos, foi preso em flagrante na madrugada do dia 4 de junho após roubar um celular usando uma faca. Ele confessou o crime na delegacia, segundo a polícia. O caso, que aconteceu na cidade de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte, foi revelado pelo portal UOL.

No Boletim de Ocorrência, a vítima — uma estudante de 22 anos — contou que foi abordada por João após os dois saírem de um ônibus. “Ele usava uma faquinha. Pegou celular, a faquinha caiu no chão e ele fugiu”, contou a jovem. Preso minutos depois, o pedreiro foi reconhecido pela vítima na delegacia. O celular foi devolvido.

Na audiência de custódia, que define se a pessoa vai permanecer detida enquanto responde ao processo, a juíza decidiu soltá-lo a pedido do promotor Luciano Sotero e da defensora Mirelle Morato Gonzaga. A magistrada determinou que João utilize uma tornozeleira eletrônica e não se aproxime da vítima. Ele ainda será julgado pelo crime e, se condenado, pode retornar à prisão.

Sotero diz que se baseou na Constituição e Código Penal para pedir a liberdade do pedreiro. “Ele é primário e confessou o delito. O código permite medidas cautelares, não existe antecipação da pena. E a prisão preventiva deve ser usada apenas em casos excepcionais, extremos”, explica.

Mulher segura tigela vazia

Crédito, Getty Images

Aumento da fome no Brasil: 33 milhões de brasileiros não têm o que comer todos os dia

Durante a audiência, João afirmou que tomava remédios para dormir, pois ficava muito “agitado” à noite, embora não tivesse prescrição porque nunca se consultou com um psiquiatra. A juíza então expediu um ofício à prefeitura de Santa Luzia pedindo que o jovem tenha acompanhamento médico, além de solicitar um exame de “sanidade mental.”

Quando soube que seria solto, João tomou a palavra e pediu para ficar mais tempo detido para se alimentar na cadeia. “Vou pegar ônibus para ir embora. Quero jantar”, disse.

A defensora Mirelle Morato Gonzaga conta que a fala surpreendeu a todos. “Ele não demonstrou querer ser solto naquele momento. A maior preocupação foi com a fome, em ter algo para comer naquela noite.”

A juíza Elâine Freitas o tranquilizou dizendo que os trâmites de soltura iriam demorar um pouco, dando tempo para que ele jantasse no presídio.

O rapaz disse morar com o pai em um bairro de periferia de Santa Luzia — perdeu a mãe quando era criança. Desempregado e com Ensino Fundamental incompleto, vive de bicos esporádicos como servente de pedreiro. A reportagem entrou em contato com a família dele, mas ela não quis falar sobre o assunto.

Acesso a direitos básicos

Segundo o promotor Luciano Sotero, o caso de João reflete a falta de acesso da população pobre a direitos básicos, como alimentação, saúde e educação.

“Muitas vezes a pessoa só consegue se consultar com um médico ou voltar a estudar quando é presa. Mas hoje chegamos ao ponto de alguém só conseguir comer na prisão”, diz Sotero, que atua na Promotoria de Minas Gerais há 11 anos.

“Não se trata de diminuir o sofrimento da vítima, mas me pergunto o que é pior: um roubo ou a falta de perspectivas de vida, de alimentação, saúde, educação pública? A diferença é que o roubo é crime, e o restante não”, diz.

Para Maurício Dieter, professor de criminologia da USP, o caso contradiz o “principio da mínima elegibilidade” do direito penal — ou seja, a ideia de que as condições de uma prisão são piores do que fora dela.

“Quando a pessoa é presa, ela espera que a vida na cadeia seja pior do que se ela estivesse livre. A ideia da encarceramento vem daí. Mas nossa sociedade admite o contrário. O Brasil consegue oferecer jantar para uma pessoa na prisão e não fora dela”, diz.

Já Sotero acredita que manter o pedreiro encarcerado seria “acabar com a vida dele”.

“Há bandidos, tanto de classe média quanto da baixa, que realmente precisam ser apartados da sociedade. Mas quando você coloca na cadeia um jovem marginalizado, invisível e sem perspectiva de vida, o que vai acontecer com ele? Vai ficar em um presídio superlotado, sem condições mínimas, controlado por facções. Para não sofrer a abusos, para se proteger, terá que fazer acordos e vai sair de lá devendo… A tendência é que cometa crimes piores”, diz.

Justiça x criminalidade

Corredor de cadeia Tremembé 2

O Brasiltem quase 1 milhão de detentos, a terceira maior população carcerária do mundo

Uma das críticas que se faz à Justiça criminal brasileira é que, embora o encarceramento e o número de condenações tenham se intensificado nas últimas décadas, os índices de criminalidade não diminuíram nas ruas. Esse é um posicionamento oposto ao de setores da sociedade, da política, do MP e da Justiça que pregam um endurecimento da repressão policial e das punições como resposta e prevenção à violência.

Em 2005, havia 296.919 detentos no Brasil. Em 2020, eram 919.651, alta de 209% — os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O número de vagas no sistema, no entanto, é de 442 mil — metade do contingente detido.

No período, o número de homicídios continuou no mesmo patamar — cerca de 51 mil por ano, em média. Em 2017, o Brasil bateu seu recorde histórico de mortes violentas: 65.602 pessoas foram assassinadas, de acordo com o Atlas da Violência.

Já as condenações por tráfico de drogas também aumentaram de maneira significativa, mas o número e a força das facções que controlam o mercado ilegal também cresceu. Em 2005, 14% dos presos foram condenados por delitos relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Já em 2019, tráfico representava 27,4% — entre as mulheres, o índice chega a 54,9%.

Embora o Código Penal preveja mais de mil crimes no país, apenas três deles correspondem a 71% de todo o sistema carcerário: tráfico, furto e roubo. Já delitos contra a pessoa, como homicídio, respondem por 11,3% do total.

“Furto, roubo e tráfico acontecem nas ruas: a polícia prende em flagrante sem investigar, e a Justiça condena com provas frágeis. Quem é preso nessas circunstâncias? Os pobres que transitam pelo espaço público. O sistema criminal é seletivo, e funciona para gerir a miséria e o território. O que explica policiais andando com fuzis em bairros periféricos? O ‘combate ao tráfico’. Em sua imensa maioria, as pessoas presas não são grandes traficantes milionários, mas sim jovens pobres que atuam no varejo”, diz Dieter.

Para ele, o encarceramento em massa “não é uma coincidência”, mas um projeto da sociedade. “Nós temos o número de presos que queremos ter. Não é por acaso que a maioria seja pobre, negra e semianalfabeta. O sistema foi pensado para ser assim, é isso que se espera dele”, diz.

Nesse contexto, defensores e criminalistas costumam comparar punições por furto às de delitos envolvendo tributação. Se alguém furtar comida, por exemplo, pode ser detido e condenado à cadeia. Porém, quem tem dívidas tributárias de até R$ 20 mil sequer é processado.

“Uma pessoa pobre dificilmente vai dever R$ 20 mil de imposto. Quem deve imposto no Brasil? A parcela mais rica da população. Mas se alguém furtar um pedaço de carne para o filho comer vai responder criminalmente”, diz Sotero.

Fachada do Supremo Tribunal Federal, com destaque para imagem que representa a Justiça vendada

Crédito, Dorivan Marinho/SCO/STF

Perfis

O pedreiro João é um exemplo do perfil majoritário dos presos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dois em cada três são negros — apenas 51% concluíram o ensino fundamental. Já 62,3% têm entre 18 e 34 anos.

É um perfil é oposto ao dos magistrados que julgam essas pessoas.

Uma pesquisa do CNJ de 2018 ouviu cerca de 11 mil profissionais: 80% deles se declararam brancos, e 18%, negros. A maioria é homem (62%) e tem origem na camada mais rica — 51% têm o pai com ensino superior completo ou mais, e 42% tem a mãe na mesma faixa de escolaridade. Um quinto dos magistrados tem pais que atuaram na mesma carreira.

“Vigora no Judiciário e no MP um perfil de homens brancos, heteronormativos. As mulheres, e em especial as mulheres negras, são subrepresentadas. Isso com certeza se reflete nas decisões: um juiz julga a partir de valores que ele tem”, diz a promotora Celeste Leite dos Santos, idealizadora do Estatuto da Vítima, conjunto de medidas, ainda a ser votada no Congresso, que visa assegurar a proteção e a promoção dos direitos das vítimas de crimes.

Para Sotero, os operadores do direito vivem “apartados da realidade do país”. “Promotor e juiz ganham um salário muito acima da média. Andam de carro importado, moram em condomínios fechados. No tribunal, usam elevador privativo, gabinete com ar-condicionado, cafezinho… A justiça é um retrato da sociedade: racista, classista, preconceituosa. Se o sistema só trabalha com punição, excluindo outros direitos, vira uma máquina de moer pobres.”

Já Mauricio Dieter, da USP, acredita que não basta mudar o perfil do Judiciário e do MP para resolver a situação, como a política de cotas no Judiciário. “A única solução que vejo são menos condenações, menos processos, menos encarceramento… A massa dos presos não está ali porque cometeu crime, mas pelo que ela é. A Justiça não é a solução, mas sim parte do problema”, diz.

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Fonte: BBC