• Daniela Fernandes
  • De Paris para a BBC News Brasil
27 outubro 2022, 15:13 -03

Atualizado Há 7 minutos

Parte de destroços do avião da Air France que caiu em junho de 2009 no Oceano Atlântico

Crédito, Reuters

Parte de destroços do avião da Air France que caiu em junho de 2009 no Oceano Atlântico

Há treze anos, o mundo se horrorizava com a tragédia do vôo AF 447 da Air France, entre Rio e Paris, que caiu no Atlântico e matou 228 pessoas. Agora, os parentes das vítimas esperam que o julgamento penal que ocorre atualmente na França contra a Airbus e a Air France, acusadas de homicídio culposo, revele que a catástrofe poderia ter sido evitada se as duas companhias tivessem sido mais rigorosas em relação à segurança.

Os parentes também esperam que esse julgamento seja um “marco” para elevar a segurança da aviação aérea comercial a um patamar maior do que o atual.

“Terei um alívio no coração quando vir que quem foi responsável por essa tragédia foi punido. Ninguém pensa em vingança. É uma questão moral conseguir entender as falhas. Tenho certeza de que a catástrofe poderia ter sido evitada”, disse à BBC News Brasil Maarten Van Sluys, co-fundador e diretor da Associação dos Familiares das Vítimas do Voo 447 (AFVV447), que perdeu sua irmã Adriana na tragédia, a maior até hoje envolvendo a Air France.

“O julgamento deverá comprovar que as empresas sabiam que o problema existia nos aviões”, diz ele, que como muitos familiares adquiriu conhecimentos técnicos sobre aviação e investiu bastante tempo e recursos financeiros na busca de informações e análises sobre as circunstâncias da queda.

“As pessoas que morreram merecem esse empenho. Minha irmã teria o feito o mesmo por mim”, diz ele.

As famílias baseiam sua argumentação de que o acidente poderia ter sido evitado em uma série de elementos.

A principal acusação é de que a Airbus e a Air France minimizaram a gravidade do perigo decorrente de falhas nos sensores de velocidade que equipavam as aeronaves da Airbus, os chamados “tubos Pitot”, fabricados pela francesa Thalès.

Esse equipamento congelava em alta altitude, exatamente o que ocorreu com o voo AF 447, e foi o ponto de partida da catástrofe.

‘Onde estava o treinamento?’

Inúmeros incidentes com os sensores de velocidades de aviões da Airbus haviam ocorrido nos dois anos que antecederam a queda do avião da Air France, em 1º de junho de 2009. A companhia aérea francesa já havia registrado um problema significativo com esse equipamento em 2008, durante um voo entre Tóquio e Paris.

Após a descoberta das duas caixas pretas do avião da Air France, cerca de dois anos após o acidente — localizadas em uma quarta fase de buscas a 3,9 mil metros de profundidade no oceano — as investigações das autoridades francesas sobre o voo AF 447 revelaram que os sensores de velocidade do Airbus congelaram, o que provocou o desligamento repentino do piloto automático.

Equipamentos da aeronave também deram indicações errôneas, deixando os pilotos desorientados. O relatório final das investigações concluiu que eles não entenderam que o avião estava caindo e tomaram as medidas opostas do que deveria ter sido feito.

Apenas 4 minutos e 30 segundos depois do congelamento das sondas de velocidade, o avião caiu no oceano, quase na horizontal, a 300 km/h.

“Quem treina os pilotos são as empresas. Onde estava o treinamento para enfrentar situações como as do voo Rio-Paris, de perda de sustentação do avião em alta altitude? Chegamos à conclusão de que ele nunca existiu’, ressalta Van Sluys.

Maarten Van Sluys e sua irmã Adriana, que morreu no acidente

Crédito, Arquivo pessoal

Maarten Van Sluys e sua irmã Adriana, que morreu no acidente

Ele diz ainda que a Airbus afirmava que seus aviões corrigiam a perda de sustentação em alta altitude. “Mas o piloto automático foi desativado após o congelamento das sondas, o que não poderia ter acontecido”, acrescenta.

Parentes das vítimas entregaram em 2019 à Justiça francesa um relatório demonstrando que a Airbus já tinha conhecimento, desde 2004 — ou seja, cinco anos antes da catástrofe com o AF 447 —, de problemas ligados aos sensores de velocidade de seus aviões.

“As empresas sabiam que existia um problema operacional nas aeronaves, mas não fizeram tudo o que podiam para solucionar isso”, diz o diretor da AFVV447. “Temos um farto material que comprova isso”, acrescenta.

Um grupo de especialistas ouvidos na primeira semana do julgamento ressaltou que o perigo representado pelos incidentes com os sensores de velocidade foi subestimado pela comunidade aérea antes da tragédia como o voo Rio-Paris.

Algumas companhias, como a Air Caraibes, já haviam trocado o modelo da sonda de velocidade que apresentava problemas por outro de nova geração, o que implica alto custo econômico porque é necessário deixar a frota no solo para realizar a mudança de equipamento.

Corinne Soulas e sua filha Caroline, que morreu no acidente

Crédito, Arquivo pessoal

Corinne Soulas e sua filha Caroline, que morreu no acidente

‘Futuro que não ocorrerá’

A francesa Corinne Soulas, que perdeu no acidente sua filha Caroline, de 24 anos, e seu genro Sébastien, comissário de bordo da Air France que trabalhava durante o voo, tem ido diariamente às audiências do julgamento.

“Eu preciso entender quem fez o que, de onde vêm os erros”, afirma Corinne, que diz se sentir “muito sozinha” após a tragédia.

“Tenho o sentimento de uma perda imensa e de um futuro que não ocorrerá. É uma dor que nunca vai ser curada”, diz ela, acrescentando que é sempre muito difícil para ela ver crianças e pensar nos netos que não terá.

Sua filha Caroline não foi localizada na operação de resgate que resultou na retirada de 104 corpos do fundo do mar, encontrados na quarta fase de buscas, dois anos após o acidente. Apenas seu genro foi encontrado. Ela temia que o casal fosse separado, o que de fato ocorreu, mas hoje acha melhor sua filha ter ficado onde está.

O depoimento do responsável militar por essa operação de resgate revelou durante o julgamento que apenas os corpos que estavam ainda presos aos assentos foram retirados do mar, o que os parentes não sabiam.

Corinne fez parte do grupo que ouviu durante o julgamento o áudio da cabine de pilotos do avião (a gravação de uma das caixas pretas) e que revela os últimos cerca de quatro minutos antes da queda.

Os diálogos haviam sido transcritos após a análise do equipamento pelos investigadores, mas nunca ouvidos pelos familiares.

“Estava apreensiva com esse momento e foi ainda mais forte do que eu imaginava. Eu chorei. Vivi a queda em tempo real, com a sensação de estar na cabine dos pilotos, com os alarmes tocando. Os pilotos estavam perdidos, eles não entendiam o que estava acontecendo, era uma incompreensão total”, conta Corinne.

“Se os pilotos não adotaram as ações corretas, é preciso entender os motivos. Eles não tinham treinamento para perda de sustentação em alta altitude. Não basta colocar tudo nas costas dos pilotos”, afirma.

Ela irá testemunhar no julgamento no final de novembro, quando serão ouvidos, durante vários dias, os familiares das vítimas e relatará os sentimentos que vivenciou desde o desaparecimento do avião.

Corinne espera que o julgamento permita descobrir a verdade e determine as responsabilidades dos envolvidos no acidente. E afirma ainda desejar que sejam tiradas lições dessa catástrofe para reforçar a segurança da aviação civil, com medidas que envolvam também as agências reguladoras do setor.

Várias mudanças já ocorreram após o acidente com o voo AF 447. A Agência Europeia da Aviação Civil proibiu pouco após a catástrofe a utilização do modelo de sonda de velocidade da Thalès que equipava o avião da Air France e passou a exigir o uso de pelo menos dois sensores da marca americana Goodrich entre os três que os aviões dispõem.

A formação dos pilotos também foi aperfeiçoada após a tragédia do voo Rio-Paris, além de melhorias nos sistemas das aeronaves da Airbus.

Mas para os familiares é possível ir além do que já foi feito, com sistemas de comunicação mais rápidos em casos de incidentes e falhas em equipamentos e que envolvam também as agências reguladoras, diz Corinne.

“Nós somos todos passageiros. Precisamos de uma sentença aponte falhas para que as empresas invistam mais recursos e coloquem a segurança no centro de suas preocupações”, destaca Van Sluys.

“Esperamos um processo exemplar, imparcial, para que isso não se repita. É o julgamento das duas empresas, e não dos pilotos”, afirma a presidente da associação francesa Entraide et Solidarité, Danièle Lamy.

O fabricante Airbus nega ter agido com negligência. A Air France informou em um comunicado que a empresa “continuará a demonstrar que não cometeu uma violação penal que teria originado o acidente e pedirá a absolvição.”

Em 2019, a Justiça francesa já havia indeferido uma ação penal contra a Airbus e a Air France. Escandalizados, os familiares entraram com recurso, como também fez o Ministério Público, que resultou no julgamento atual por homicídio culposo.

Fonte: BBC