• Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Há 12 minutos

O Massacre de São Bartolomeu, tela de François Dubois, em domínio público

Crédito, Domínio público

Foi um massacre, uma verdadeira carnificina o que se viu em Paris há 450 anos. O episódio entrou para a história como Noite de São Bartolomeu, porque foi iniciado nas primeiras horas da madrugada do dia 24, data em que católicos celebram o santo.

A grande matança, que segundo relatos da época tingiu de sangue até mesmo as águas do Rio Sena, foi uma tentativa da maioria católica de exterminar a minoria protestante — no caso, os huguenotes, seguidores da linha protestante do teólogo francês Jean Calvino (1509-1564).

Mas os contornos religiosos na realidade eram pretexto, em um mundo em que o poder não era nada laico, para disputas geopolíticas. No contexto, vale ressaltar que a França vivia as chamadas guerras religiosas, com oito episódios confrontando católicos e reformadores entre 1560 e o fim do século 16.

Se o trono francês era ocupado por uma família católica — a Casa de Valouis, que reinou entre 1328 e 1589 —, o calvinismo avançava sobretudo nas regiões sul e oeste, tendo muitos nobres entre seus adeptos.

Com a morte do rei Henrique 2 (1519-1559), sua mulher, a rainha Catarina de Médici (1519-1589), tornou-se regente, já que o herdeiro, Carlos 10 (1550-1574) tinha apenas 10 anos.

“Ela era uma mulher muito discreta, mas antiprotestante por formação. Vinha de uma tradição assim”, pontua o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Então Paris se preparou para receber um evento que, teoricamente, deveria selar a paz entre os dois grupos. Um casamento muito simbólico, unindo a filha de Catarina, a princesa Margarida de Valois (1553-1616) e um líder huguenote, Henrique de Bourbon (1553-1610) — que mais tarde se tornaria o rei Henrique 4.

“O casamento foi uma tentativa, sem sucesso, de reaproximar católicos e protestantes na França”, explica a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

“Lembrando que as guerras de religião aconteciam de maneira mais expressiva na França e na Espanha nesse período.”

“Havia um acordo entre a facção protestante, liderada por Henrique de Bourbon, com a facção católica, representada pela casa real. Esse casamento tinha por finalidade selar uma espécie de pacto, uma tentativa de apaziguar os ânimos entre católicos e protestantes”, pontua Moraes.

Não foi o que ocorreu.

Um atentado — e uma carnificina

Paris estava em festa. Era como se houvesse uma bandeira branca, uma trégua por conta do casamento real, ocorrido em 18 de agosto de 1572.

Muitos huguenotes viajaram até a capital para acompanhar as festividades.

“Tudo transcorria num clima ameno, até o dia 22”, conta Moraes.

Foi quando um atentado a bala acertou o almirante Gaspard de Coligny (1519-1572), um dos principais líderes protestantes franceses.

“Ele não morreu nesse incidente, mas isso elevou a temperatura”, diz Moraes.

Coligny era visto como um inimigo por seus antecedentes.

“Ele era líder do partido protestante e já havia entrado para a luta armada contra católicos anos antes, embora parte da historiografia o descreva como alguém que preferia mais a diplomacia”, frisa Medeiros.

Não há um consenso absoluto, mas a maior parte dos historiadores acredita que esse atentado tenha sido arquitetado pela própria rainha Catarina.

“Como o atentado não foi bem-sucedido, ela então determinou que o serviço fosse executado de maneira plena, agora com a participação do próprio rei Carlos 9”, narra Moraes.

Aproveitando-se do fato de que a cidade estava com os principais líderes calvinistas, por conta do casamento, os nobres católicos teriam então preparado uma lista com os nomes daqueles que deveriam ser executados. O plano era deixar a facção protestante acéfala.

Uma manhã perto dos portões do Louvre, de Edouard Debat-Ponsan, em domínio público

Crédito, Domínio público

A chamada Noite de São Bartolomeu teve início nas primeiras horas da madrugada do dia 24, data em que católicos celebram o santo

Os soldados começaram o trabalho na madrugada do dia 23 para o dia 24.

“Mas as coisas saíram de controle. A matança acabou sendo indiscriminada”, acrescenta o historiador.

“A ordem era para matar os líderes. Só que todos os que acabaram sendo identificados como huguenotes acabaram sendo alvos.”

Em seu livro A History of Christianity, o historiador Clyde L. Manschrek, professor na Universidade Rice, nos Estados. Unidos, relata que as ruas ficaram “cobertas de corpos mortos, os rios ficaram manchados, as portas e os portões do palácio respingados com sangue”.

“Carroças carregadas de cadáveres, homens, mulheres, garotas e até mesmo crianças foram jogadas no Sena, enquanto torrentes de sangue corriam em muitas áreas da cidade”, escreveu ele.

Manschrek encontrou relatos até de uma garotinha que foi “banhada no sangue de seus pais assassinados e ameaçada com o mesmo destino se por ventura também ela se tornasse huguenote”.

De acordo com informações da época, 1100 corpos foram retirados do Rio Sena nos dias seguintes ao massacre. Não há um número exato de quantos foram executados. Historiadores mais comedidos cravam 3 mil. Outros acreditam que a cifra pode ter sido de 100 mil. A maior parte, contudo, costuma situar entre 20 mil e 50 mil o número de mortos.

O que ninguém questiona foi a brutalidade da violência que se viu pelas ruas.

“Os protestantes foram degolados, mutilados, estripados. Foi uma situação violentíssima, um atentado contra a causa calvinista em um momento de trégua, de paz, afinal houvera um casamento”, comenta Moraes.

“Dos protestantes franceses que foram a Paris, poucos escaparam com vida. Quem conseguiu, fugiu ou se escondeu”, afirma ele.

“Milhares de huguenotes, juntamente com seu comandante, Gaspard de Chatillon, foram mortos”, complementa Medeiros.

Evidentemente que católicos também foram mortos.

“Embora esse seja o massacre de protestantes mais famoso, as perdas aconteciam de ambos os lados, seja na parte católica quanto na parte protestante”, lembra Medeiros.

A Igreja Católica

Para o historiador Moraes, o momento era de “crise da cristandade”.

“Nas guerras religiosas, não tem mocinho nem bandido”, relativiza.

“Onde prevalece o católico, o protestante sofre. Onde prevalece o protestante, o católico sofre.”

Mais do que luto e cicatrizes, o episódio deixou sequelas históricas, evidentemente. O posicionamento da Igreja Católica na época foi controverso. Quando a notícia chegou ao papa Gregório 13 (1502-1585), ele teria celebrado uma missa em alusão ao ocorrido.

“Há uma polêmica quanto a isso porque muitas fontes dizem que ele celebrou em ação de graças pela morte dos ‘hereges’, o que contribuiu para acirrar ainda mais a situação entre católicos e protestantes, como se o papa tivesse chancelado uma chacina”, comenta Moraes.

“Mas outros afirmam que o papa fez isso de maneira inadvertida, sem saber da gravidade do que realmente tinha ocorrido.”

“Não foi um ato ordenado diretamente pela Igreja Católica, mas por Carlos 9 e sua mãe Catarina de Médici, que eram católicos”, salienta a pesquisadora Medeiros.

“A Igreja exercia sua soberania espiritual sobre a França e sobre os demais reinos católicos, mas não interferia em questões de governo. É certo que tudo acontecia sob ‘a bênção e chancela’ da Igreja, mas não foi um massacre ordenado diretamente por Roma.”

A liberdade religiosa, contudo, seria uma conquista bem mais tardia. Medeiros explica que a questão envolvia “disputas territoriais, principalmente quando os príncipes tomavam parte dessa disputa”, ou seja, era algo que havia “ultrapassado a esfera religiosa”.

Na França daquele momento, estava estabelecido “que os súditos deveriam professar a fé de seus soberanos”, explica ela.

“Eram obrigados. Quem não quisesse professar a fé da corte deveria deixar o território”, diz Medeiros.

Só em 1648 é que um acordo passou a garantir certa “liberdade de consciência”. Mesmo assim, Medeiros lembra que ainda era considerado “dissidente” aquele que não professasse a religião do rei.

Consequências

O massacre praticamente acabou com o calvinismo na França.

“As principais lideranças ou morreram ou tiveram de fugir, se exilar. A causa calvinista morreu na França e renasceu em outros lugares, como nos Países Baixos”, conta o historiador.

Mas outra consequência foi o desenvolvimento teórico de um debate que questionava a própria ideia de absolutismo.

Afinal, se o rei era visto como um representante de Deus na terra, era preciso um argumento que viabilizasse esse direito à resistência ao mesmo.

“Como enfrentar um rei que se julga representante de Deus? Os protestantes acabam desenvolvendo uma teoria de resistência”, pontua Moraes.

Neste contexto, foram publicadas obras de intelectuais huguenotes. As principais são Franco-Gallia, do pensador François Hotman (1524-1590), Direito dos Magistrados sobre seus Súditos, do teólogo Théodore de Bèze (1519-1605), e Protesto Contra os Tiranos, do teólogo Philippe Duplessis-Mornay (1549-1623) e do diplomata Hubert Languet (1518-1581).

“Ou seja, de uma aparente derrota, surgiram na sequência trabalhos muito interessantes de contestação ao poder absolutista”, comenta o historiador Moraes.

Santo mártir

Além disso, ficou ainda um capricho irônico da história. A noite do episódio celebra São Bartolomeu, como ficou conhecido no catolicismo Natanael, um dos 12 apóstolos de Jesus.

Segundo a tradição, ele teria sido martirizado quando atuava como pregador na Índia, no ano 51 da era cristã. E sua morte teria ocorrido de forma violenta, por esfolamento — por isso ele é assim representado, segurando a própria pele, na Capela Sistina, na obra-prima de Michelangelo (1475-1564).

“O suposto mártir São Bartolomeu acabaria, pela data, associado a esse martírio dos calvinistas no século 16”, compara Moraes.

“Uma morte muito violenta que gerou veneração a um santo, ligado pela data a mortes muito violentas 450 anos atrás.”

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Fonte: BBC

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