Protesto antinuclear por conta da cúpula do G7 no Japão

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Protesto antinuclear no Japão, que sediou a cúpula do G7; país rediscute limites de seu pacifismo das últimas 8 décadas

  • Author, Tessa Wong e Eri Okazaki
  • Role, Da BBC News em Hiroshima (Japão)
  • Há 7 horas

Toshiyuki Mimaki lembra-se de chorar enquanto olhava para o céu e via o pôr-do-sol escurecido pela bomba nuclear que havia atingido Hiroshima.

Ele tinha apenas três anos de idade naquela época, mas recorda dos sobreviventes queimados e zonzos que passavam diante de sua casa, no interior. E recorda de se dirigir buscar o seu pai na cidade – que naquele momento se parecia a um cenário apocalíptico.

Com o passar dos anos, ele foi relatando essas memórias fragmentadas, porém vivas, a estudantes de escolas, a jornalistas e a qualquer pessoa que quisesse documentar o trauma dos “hibakusha” – como são chamados os sobreviventes da bomba atômica. É um grupo que fica cada vez menor.

“Sobraram poucas pessoas como nós, que viveram a guerra e o bombardeio. Estamos morrendo”, diz Mimaki à BBC, sentado no Parque Memorial de Hiroshima, onde líderes mundiais que compareceram à cúpula do G7, no último fim de semana, depositaram homenagens.

“Cedo ou tarde não sobrará nenhum hibakusha. Como o Japão terá mudado até lá?”

O medo dele ecoa pelo Japão. O mundo ao redor do país mudou. E o próprio Japão envelheceu, e seu milagre econômico pós-guerra se enfraqueceu, diante do enorme poder e tamanho do mercado da China. Agora, um ansioso público japonês deseja maior proteção contra as novas ameaças que batem a sua porta.

O governo do Partido Liberal Democrata (LPD), cujas mãos há tempos estavam atadas diante da aversão da população à militarização, agora veem esses nós ficando mais frouxos.

Toshiyuki Mimaki

Toshiyuki Mimaki é parte do cada vez menor grupo de pessoas que sobreviveram ao bombardeio de Hiroshima

O governo do premiê Fumio Kishida tem embarcado no maior gasto militar em décadas e planeja expandir suas Forças Armadas.

E cada passo rumo à militarização deixa o Japão cada vez mais dividido quanto a seus ideais pacifistas.

“O mundo está passando por um período de turbulência”, diz Mimaki. “Recentemente, o premiê Kishida começou a falar em aumentar o orçamento militar. Eu pensei: ‘será que vamos começar uma guerra?’”

Um equilíbrio difícil

Deixado de joelhos pelo uso de bombas atômicas contra Hiroshima e Nagasaki, o Japão foi transformado de uma potência imperialista a uma nação pacifista em questão de anos.

Sua Constituição pós-Segunda Guerra, adotada em 1947 e imposta pelas forças ocupantes americanas, consolidou essa transformação. A Carta contém uma cláusula conhecida como Artigo 9: o primeiro parágrafo renuncia à guerra, e o segundo promete que o país nunca manterá tropas militares.

Considerado a gênese do pacifismo japonês, o Artigo 9 está no centro do debate atual entre a necessidade de defesa e o anseio por paz. Há quem acredite que essa cláusula enfraqueceu o Japão, mas outros argumentam que mudar isso significa abdicar do pacifismo e esquecer as dolorosas lições da história.

Diante de uma significativa oposição pública, vários líderes tentaram – sem sucesso – modificar o Artigo 9. Mas, diante de cada novo desafio de segurança, o governo japonês conseguiu expandir a interpretação da cláusula.

O domo de Hiroshima, única construção remanescente do bombardeio; à direita, visita de líderes do G7

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O domo de Hiroshima, única construção remanescente do bombardeio; à direita, local durante a visita de líderes do G7

As Tropas de Auto-Defesa (SDF), que seriam a versão japonesa de um exército, foram criadas em resposta à Guerra da Coreia (1950-53) e ao início da Guerra Fria. Nos anos 1990, durante a Primeira Guerra do Golfo, o Japão enviou a SDF em missões de paz – foi a primeira vez que as tropas foram enviadas a conflitos internacionais.

Mais recentemente, e de modo controverso, diante da ascensão da China e de uma imprevisível Coreia do Norte, o (agora falecido) premiê Shinzo Abe promoveu leis que permitiram as tropas japonesas a combater no exterior junto a países aliados, em autodefesa.

“O pacifismo é uma ideia fixa do público japonês, que não vai abandoná-la”, avalia James D Brown, professor-associado de Ciências Políticas da Universidade Temple, no Japão.

“Em vez disso, o que está em curso é um processo de reinterpretar o que pacifismo significa. Se já significou oposição ao uso de forças armadas, hoje significa oposição à agressão e aceitação do uso da força em nome da autodefesa, em uma lista crescente de circunstâncias.”

O Japão está mais uma vez em um ponto decisivo, diante de desafios sem precedentes, que fizeram emergir um medo de cerco.

É que a China, assertiva, gasta bilhões de dólares em seu Exército e faz movimentos cada vez mais ousados no Mar do Sul da China – especialmente contra Taiwan, que fica próxima às ilhas do sul japonês.

Isso despertou entre japoneses a ansiedade de que, caso surja um conflito armado em Taiwan, o Japão acabaria sendo não apenas arrastado para uma guerra entre EUA e China, como também alvejado como um aliado americano. Afinal, o país abriga bases militares americanas e têm a maior concentração de tropas americanas fora dos EUA.

A Coreia do Norte, enquanto isso, é uma ameaça existencial perene. Suas ambições nucleares cresceram de modo mais alarmante no último ano, quando o país lançou um número recorde de mísseis – inclusive um que passou por cima do Japão.

A invasão russa da Ucrânia e a possibilidade de que Moscou use armas nucleares também despertou conversas a respeito de eventuais guerras nucleares. Por fim, os desdobramentos de uma aliança mais próxima entre Moscou e Pequim também rondam os japoneses.

Abe e Kishida, em foto de arquivo

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Abe (à esq, ex-premiê) e Kishida (dir, atual premiê) fizeram defesas da militarização

“Há um entendimento geral no Japão de que vivemos em uma vizinhança muito pesada”, diz Kazuto Suzuki, professor de Segurança Internacional e Ciências Políticas na Universidade de Tóquio.

Pedidos por mais militarização costumavam ser dominados por uma minoria de conservadores que tentavam resgatar o orgulho nacional. Mas pesquisas de opinião recentes mostram que a ideia tem ganhado apelo entre o público mais amplo.

Mais japoneses (41,5% em 2022, em comparação com 29% em 2018) dizem querer uma SDF maior e mais forte. O apoio da aliança de segurança Japão-EUA cresceu para 90%, e metade dos entrevistados se disse favorável a mudanças na segunda parte do Artigo 9, que impede o Japão de ter um Exército.

Até algumas pessoas em Hiroshima defendem isso.

“Sempre que eu ouço as notícias sobre mísseis (norte-coreanos), fico horrorizada”, diz uma mulher que preferiu se identificar apenas como Sra. Tanaka. “Há casos, no mundo de hoje, em que as pessoas são atacadas de repente. Me pergunto se é necessário ver (gastos militares) como algo que sirva para nos proteger.”

É o tipo de comentário que soa como música aos ouvidos do Partido Liberal Democrata. A agremiação sempre advogou por reformas constitucionais e defendeu a militarização, em particular durante o governo de Abe.

Em anos recentes, o governo também ficou sob pressão de Washington – em especial sob Donald Trump – para que fizesse mais dentro do âmbito da aliança de segurança com os EUA.

“O governo sempre quis avançar com o reforço da SDF. No passado, a opinião pública impedia isso – o que não é mais o caso”, diz Brown.

No atual governo Kishida, o Japão comprou oito caças, reformou porta-aviões e encomendou ,centenas de mísseis Tomahawk. O premiê prometeu gastar 43 trilhões de ienes (R$ 1,5 tri) em defesa nos próximos anos. Até 2027, o orçamento militar do Japão alcançará 2% do PIB e virará o terceiro maior do mundo.

Os liberais-democratas também estão pressionando por revisões constitucionais, para detalhar a existência da SDF e para deixar explícito que o Japão pode manter um exército de autodefesa.

Ironicamente, Kishida costuma ser visto como uma figura pacífica dentro do partido. Com laços próximos a Hiroshima – ele teve parentes mortos no ataque atômico -, o premiê tem advogado por um mundo sem armas nucleares. Até mesmo escreveu um livro sobre o assunto.

A escolha por Hiroshima para sediar o G7 no último fim de semana parece ter sido deliberada, para reiterar essa estratégia antiproliferação de armas nucleares.

O argumento de Kishida é de que, para manter a paz na Ásia, o Japão precisa aumentar consideravelmente a sua defesa. Mas alguns observadores também acreditam que a reputação pacifista dele dá um verniz mais politicamente aceitável à proposta de militarização feita por seu governo.

“Figuras pacíficas podem adotar movimentos linha-dura porque as pessoas consideram seus motivos insuspeitos”, avalia Brown.

Cruzando a linha vermelha

Mas até mesmo os linha-dura japoneses não mencionam qualquer proposta de construir um arsenal nuclear. Não surpreende que esse permaneça sendo um assunto proibido no único país do mundo a ter sido atacado por uma arma nuclear.

Ainda assim, a busca japonesa por uma defesa mais robusta fez Abe e Kishida cruzarem o que alguns veem como uma linha vermelha.

Muitos dentro do Japão e em vizinhos como a China temem que outros tabus do tipo possam ser quebrados pelo país no futuro.

Uma possibilidade em discussão é se o Japão deveria emprestar armamento letal para países que estejam sob invasão, como a Ucrânia. Durante o G7, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, agradeceu o Japão por um pacote de auxílio financeiro de US$ 7,6 bilhões. Tóquio também fornece equipamentos não-letais (como coletes à prova de balas) a Kiev.

Isso, nota o acadêmico Suzuki, seria uma espécie de “teste para Taiwan”. Já há questionamentos a respeito de o quanto o Japão auxiliaria os EUA no caso de um conflito com a China a respeito da ilha, considerada por Pequim uma província rebelde.

Uma ideia mais controversa diz respeito à ideia levantada por Shinzo Abe no ano passado, de o Japão abrigar armas nucleares americanas. O apoio público a essa ideia, conhecida como compartilhamento nuclear, ainda é baixo. Kishida a rejeitou em 2022, dizendo que ela se chocava com a posição antinuclear japonesa.

Ainda assim, o Japão pode acabar mudando de ideia sob determinadas circunstâncias, avaliam especialistas. Por exemplo, se a Coreia do Sul adquirir suas próprias armas, se a ameaça chinesa for vista como maior e se a Rússia usar armas nucleares na Ucrânia.

Cada vez que o Japão cruza uma nova linha vermelha ou debate a possibilidade de fazê-lo, intensifica a disputa em torno de sua identidade pós-guerra e seu compromisso com o pacifismo.

Há quem argumente que, a despeito do avanço da militarização, os ideais japoneses permanecem intactos. Enquanto seu pacifismo possa parecer “inconsistente” ao longo dos anos, seus sentimentos antinuclear e antiguerra permanecem vivos, diz Daisuke Akimoto, especialista em pacifismo da Universidade Hosei, em Tóquio.

O que está em curso agora é apenas “o fortalecimento de políticas de segurança em resposta a mudanças no ambiente estratégico”, argumenta Akimoto.

Suzuki concorda. “Eu de fato tenho confiança na intenção japonesa”, ele diz. “De fato acredito que o Japão se compromete há 80 anos a não ir à guerra. Tivemos uma experiência muito ruim e não vamos repeti-la.”

Yuna Okajima, ativista antinuclear

A ativista antinuclear Yuna Okajima teme que o governo destrua ideais pacifistas japoneses

Enfrentando o passado

Mas nem todos têm essa certeza e acreditam que essa constante redefinição do pacifismo estica o princípio até o ponto em que ele pode se romper.

“Acho que a forma como (o governo) está agindo é suja”, diz Sara Ogura, estudante em visita a Hiroshima. “Eles estão interpretando (a lei) de modo que deliberadamente abrem oportunidades para o uso da força. Me causa desconfiança.”

Embora o governo diga “não ter a intenção de ir à guerra agora, acho que ele meio que está se preparando para ir à guerra quando chegar a hora”, diz o ativista anti-armas nucleares Yuna Okajima.

Alguns também acreditam que a disposição a se militarizar é alimentada pela ausência de um acerto de contas nacional com os próprios erros cometidos pelo Japão.

A “educação para a paz” a respeito das duas guerras mundiais é algo obrigatório nas escolas japonesas, mas há poucas discussões a respeito do papel do Japão como agressor e causador de atrocidades durante a Segunda Guerra Mundial.

A estudante universitária Misuzu Kanda acredita que a “história negativa do Japão com outros países é às vezes encoberta pela questão nuclear.”

“Eu nasci na região de Hiroshima. A educação para a paz é feita principalmente da perspectiva de Hiroshima e Nagasaki, a respeito de o quanto sofremos. Mas, ao mesmo tempo, quando pensamos na paz, acho que precisamos refletir também sobre o que fizemos aos outros países.”

Yuna Okajima concorda: “acho que é meio que uma prova de que o governo japonês não está disposto a enfrentar sua história. Por isso eles não ensinam isso às crianças – para nutrir seu espírito patriótico, acho. Mas se não olharmos para nosso histórico como perpetradores, aumenta a chance de cometermos o mesmo erro.”

Depois de ter sido completamente destruída pela bomba atômica, Hiroshima é hoje uma cidade organizada e pitoresca localizada entre montanhas, que carrega poucos traços evidentes de seu passado – exceto pelo Domo Genbaku, a única estrutura que ficou de pé após o bombardeio.

No Parque Memorial da Paz são feitas as homenagens aos mortos, sob a inscrição: “Que todas as almas aqui descansem em paz, porque não repetiremos o mal”.

“As bombas atômicas foram derrubadas sobre Hiroshima e Nagasaki porque começamos uma guerra”, diz Mimaki. “Hiroshima foi queimada, Nagasaki foi queimada, e foi o Exército Imperial japonês que cometeu esse erro. Não devemos entrar em guerras novamente.”

Fonte: BBC