Talvez fosse um debate inevitável em algum momento, mas a discussão sobre aumentar as atuais metas para a inflação do Brasil acabou inflamada depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu sua metralhadora verbal contra o Banco Central e criticou, entre várias outras coisas, os alvos atuais.

“Você é obrigado a ‘arrochar’ mais a economia para atingir a meta (…) Por que não fez 4,5% como nós fizemos?”, disse Lula em uma entrevista em janeiro. No mesmo momento, o dólar e as taxas de juros futuro começaram a subir.

O fato é que, enquanto o presidente faz política em seus palanques, há muitos economistas sérios debatendo a questão. É um rol que inclui acadêmicos, analistas do mercado financeiro e ex-diretores do Banco Central divididos tanto entre defender quanto rechaçar uma revisão das metas de inflação atualmente vigentes no Brasil.

Fixada em 4,5% por mais de uma década nos anos de 2000 e 2010, a meta de inflação foi sendo reduzida pelos governos seguintes a partir de 2017, até chegar aos 3% em que está prevista para pousar em 2024 e 2025. Para 2023, o alvo central é de 3,25%, com uma margem de tolerância entre 1,75% e 4,75%.

O criador do sistema de metas brasileiro, o ex-diretor do Banco Central Sérgio Werlang, é um dos mais vistosos nomes que advogam pelo afrouxamento dos 3%. “É muito baixo para o Brasil”, disse ele em entrevista recente à CNN, destacando a alta volatilidade da inflação brasileira e a dificuldade de cortar gastos públicos no país.

O argumento central é que uma meta mais baixa do que o que seria um nível de equilíbrio da economia força o Banco Central a subir os juros demais, o que, por consequência, sacrifica também o crescimento econômico.

Hoje professor e assessor da presidência da Fundação Getulio Vargas (FGV), Werlang tem ao seu lado nessa defesa colegas de FGV como os pesquisadores Aloisio Araújo, Bráulio Borges e Ricardo Barboza, alguns dos principais economistas da academia que têm se debruçado sobre o assunto em busca do que seria o nível de inflação mais adequado para o Brasil.

No meio do caminho, há os que estão divididos, caso do também ex-diretor do BC Tony Volpon: “Eu já apoiei publicamente a queda da meta para 3%, e hoje mudei de ideia”, diz. “Mas é necessário avaliar os riscos de mudar algo que já está definido.”

Na ala que considera um retrocesso mexer na meta que os governos recentes batalharam tanto para reduzir, estão em peso os economistas do mercado financeiro, além de outros nomes proeminentes como o do professor sênior da FEA, a faculdade de economia da Universidade de São Paulo (USP), Heron de Carmo, um dos principais especialistas em inflação do país.

“Conseguir controlar a nossa inflação foi um sacrifício social muito grande”, diz ele, “e subir a meta de volta para 4% não resolveria nada”.

Até mesmo no exterior a mesma discussão ganhou os holofotes, depois da explosão global de inflação e juros deixada pela pandemia. Foi lá, inclusive, que ela começou.

Em 2020, no auge da pandemia, o Fed, o banco central norte-americano, quebrou todos os protocolos ao dizer que flexibilizaria a maneira de cumprir sua meta de 2% como forma de ajudar na recuperação econômica.

Em novembro do ano passado, foi o ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) Olivier Blanchard, um dos mais respeitados economistas vivos, quem aqueceu o debate ao defender, em um artigo no jornal britânico Financial Times, o aumento da meta de 2% para 3% nas economias avançadas.

Por que manter

“Lá até pode acontecer isso, mas, aqui, não daria certo de jeito nenhum”, é a resposta de Heron de Carmo, da USP, sobre uma eventual replicação da ideia de Blanchard para um país como o Brasil.

Em suas palavras, aumentar a meta seria um sinal de “leniência” do governo com suas próprias obrigações de racionalizar gastos em vez de verter mais dinheiro sobre a dinâmica dos preços.

“A meta deveria ser mantida em 3% porque ela também, indiretamente, impõe um controle fiscal, como uma espécie de teto de gastos indireto”, disse Carmo, que trabalhou por mais de duas décadas com os índices de inflação da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e, depois, do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE).

“O que o governo quer é uma licença para gastar. Os agentes econômicos sabem disso, e o resultado são expectativas muito ruins. Aí a inflação fica fora do controle e faz o que? Aumenta a meta de novo?”, completa o professor.

As expectativas são a impressão que investidores, empresários e as pessoas têm do que vai acontecer com os preços, e são um dos grandes focos do Banco Central quando toma suas decisões de juros.

Isto porque se as pessoas não sentem que a inflação está domada, elas passam a tomar suas decisões de compras, reajustes ou investimentos se preparando sempre para preços mais altos, o que retroalimenta o crescimento da inflação.

O resultado é que, em vez de ajudar a baixar os juros, um aumento atabalhoado da meta pode acabar fazendo com que subam mais.

Como a discussão acabou aparecendo em meio a um cenário de ataques abertos do presidente da República ao BC, a bolsa de apostas para o cenário de descrédito ficou maior.

Um estudo feito pelo banco Itaú estimou que, justamente pelo efeito dessa “desancoragem das expectativas”, como é chamada pelo jargão econômico, subir a meta de 2024 de 3% para 4,5% elevaria a inflação para perto dos 6%.

Isso obrigaria o BC a subir mais os juros, até os 15%, para conseguir traze-la de volta para os tais 4,5%. As estimativas foram feitas com base em modelos econômicos usados pelo próprio Banco Central.

“Entre 2003 e 2016 a meta de inflação era 4,5% e o juro real médio foi de 7,5%, enquanto entre 2017 e 2022, com meta de inflação em queda, o juro real foi de 2,8%”, apontou o relatório do Itaú. “Ou seja: reduzir ou subir a meta não necessariamente aumenta ou reduz o juro real.”

A Selic, a taxa básica de juros da economia, decidida pelo BC, está atualmente em 13,75%, o maior nível desde 2016.

Em 2022, o IPCA, índice oficial de preços do IBGE, encerrou o ano a 5,8%, estourando o teto da meta pelo segundo ano seguido e pela sexta vez nos 24 anos desde que o regime de controle foi estabelecido no Brasil, em 1999.

Por que aumentar

Entre os principais argumentos daqueles que advogam pelo aumento da meta brasileira estão o fato de que a nossa inflação é mais instável do que outras – por sofrer maior impacto do câmbio e dos alimentos – e também da tarefa hercúlea que é conseguir mexer nos gastos públicos no Brasil, que possui um orçamento extremamente engessado.

Esses são os principais pontos destacados por Sérgio Werlang para defender a calibração dos 3% de volta para algo na faixa dos 4%.

“É necessário ter uma coordenação entre a política fiscal e a monetária, mas é muito difícil ter controle da nossa política fiscal”, disse ele à CNN. “Se a gente consertar o fiscal, a gente pode ter a mesma meta que o Chile.”

Fixada em 3% há anos, a meta de inflação do Chile foi a principal referência usada pelo então presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, e sua equipe para justificar o processo de redução das metas brasileiras. Colômbia e México são outros latino-americanos que perseguem os 3%, além do Peru, onde o alvo é 2%.

A falta de estudos mais aprofundados e aplicados à realidade brasileira, inclusive, é também uma das críticas.

“Quando começou a reduzir as metas, a principal motivação explicitada pelo CMN [Conselho Monetário Nacional] era a convergência para outros emergentes, mas esse grupo de emergentes escolhido é bem seleto” diz Bráulio Borges, que é pesquisador associado da FGV e também economista-sênior da LCA Consultores.

Borges e o colega Ricardo Barboza estão conduzindo um levantamento que observou as metas de inflação em um conjunto de 59 países emergentes, entre latinos, africanos e asiáticos. “A meta média deles está em torno de 4%, e a mais comum é 5%”, diz Borges.

Entre outros que poderiam igualmente servir de referência para o Brasil ele cita a Índia, que tem o centro da meta em 4%, a África do Sul, que fixa apenas um intervalo de tolerância, de 3% a 6% – “o meio seria 4,5%”-, e o Uruguai, que também trabalha apenas com uma banda, que vai do 3% ao 7%. No Brasil, a banda de tolerância será de 1,5% a 4,5% em 2024.

Outra tendência observada pelo estudo é que, embora funcione bem no Chile, no México e na Colômbia a meta de 3%, adotada há mais de uma década, quase nunca foi estritamente cumprida. “Na maior parte do tempo a inflação lá foi 4%”, conta Borges. Ou seja, na prática, mesmo a meta que o Brasil tenta copiar mal funciona.

“Na maior parte dos países avançados a meta é 2% e, nos últimos 25 anos, a inflação deles observada é bem próxima disso; o sistema de fato funciona como âncora”, diz o economista.

“Já nos emergentes, a inflação quase nunca fica abaixo ou no centro da meta; na maior parte do tempo fica acima. Na prática, para os emergentes, o centro da meta é o piso. E é aí que entra o debate se a meta é factível ou ousada demais, o que tem um custo econômico e acaba prejudicando a própria reputação da política monetária.”

Mudar o combinado

Além da alta volatilidade do câmbio e, com ele, da inflação no Brasil, o ex-diretor de assuntos internacionais do BC Tony Volpon destaca outros pontos para justificar a sua mudança de ideia sobre o assunto.

“Um país não deveria ter metas ligadas a autarquias independentes sem que haja grande apoio àquela meta”, disse ele, citando o ex-integrante do banco central inglês Paul Tucker, que divagou sobre o assunto no livro “O poder não eleito: a busca pela legitimidade nos bancos centrais e no Estado regulador”.

A ideia é que, sem um consenso político e social acerca dessas políticas, elas acabam questionadas e mais difíceis de ser aplicadas.

Por outro lado, o que dificulta o debate, na visão de Volpon, é que as metas já estavam definidas tanto para 2024 quanto para 2025.

“Talvez 3% não seja o ideal, mas também há que se avaliar quais os riscos de mudar algo que já está definido”, disse. “Em especial em momentos de muita incerteza, como esse, em que foi só o presidente começar a falar do assunto que os juros longos e as expectativas de inflação começaram a subir.”

As metas de inflação do sistema brasileiro são decididas pelo Conselho Monetário Nacional, o CMN, formado pelo ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento e o presidente do Banco Central.

Eles se reúnem tradicionalmente em junho para decidir a meta de três anos à frente: em junho deste ano devem definir a meta de 2026.

A expectativa, agora, é ver se Fernando Haddad, Simone Tebet e Roberto Campos Neto, a trinca que forma hoje o CMN, terão novidades sobre 2024 e 2025 também.

Fonte: CNN Brasil