Homem posando com AR-15

Crédito, Reuters

Membro da NRA posa com uma arma estilo AR-15 na convenção anual em Indianápolis, Indiana

  • Author, Chelsea Bailey
  • Role, Da BBC News em Washington
  • Há 1 hora

A convenção anual da Associação Nacional de Rifles (NRA, na sigla em inglês) foi realizada neste fim de semana, nos Estados Unidos, após dois massacres consecutivos.

Os ataques em Nashville (Tennessee, EUA) e Louisville (Kentucky, EUA) — que juntos deixaram 11 mortos em apenas duas semanas — reacenderam protestos em todo o país e apelos para proibir rifles de estilo militar.

No centro de exposição da NRA, no entanto, os negócios estavam indo de vento em popa. Havia centenas de estandes dedicados a customizar a arma que se tornou o cartão de visitas dos autores de massacres: o fuzil AR-15.

Acessível, customizável, leve e letal, o rifle estilo AR-15 se tornou um para-raio na amarga guerra cultural americana em relação às armas. Enquanto os tribunais debatem a Segunda Emenda da Constituição, que garantiria o direito de portar armas, e analisam se devem expandir ou restringir os direitos às armas, a ascensão do AR-15 é um ponto crítico para ambos os lados.

Mas o país não chegou a esse momento por acaso, afirmam especialistas e profissionais da indústria de armas. Entenda, a seguir, como milhões de americanos adotaram o AR-15.

‘Sou um entusiasta de armas’

Colion Noir, um dos ativistas negros mais proeminentes da NRA, conta que, na primeira vez que disparou uma arma, ficou apavorado. Mas no segundo tiro, ele diz que se apaixonou pelo poder que sentiu ao “conter uma explosão” na palma da mão.

“Sou um entusiasta de armas”, diz.

Colion Noir com AR-15

Crédito, Colion Noir

O ativista americano de direitos às armas Colon Noir posa com um AR-15

Assim como milhões de americanos, Noir começou a atirar com armas portáteis de pequeno porte. Mas com o tempo ele se viu gravitando em direção a um novo tipo: o AR-15.

“Se você pensa em comprar um carro novo, por algum motivo, você sempre vê esse carro em todos os lugares”, diz ele sobre seu crescente amor por armas. “Foi mais ou menos isso que aconteceu.”

E talvez seja porque o AR-15 e rifles semelhantes estão de fato em todos os lugares nos Estados Unidos. De acordo com algumas estimativas da indústria, há mais de 20 milhões de fuzis do tipo AR-15 de propriedade legal nos EUA hoje.

O rifle se tornou uma das armas mais reconhecidas na América. Sua silhueta está estampada em cafés, chapéus, bandeiras e adesivos. Alguns legisladores dos EUA orgulhosamente usam broches com a imagem no peito; outros propuseram um projeto de lei para tornar oficialmente o fuzil a “arma nacional” dos Estados Unidos.

Mas o aumento da popularidade do AR-15 também está inexoravelmente ligado ao aumento dos massacres nos Estados Unidos. A imprensa chamou o rifle de “a arma preferida dos atiradores”, e o AR-15, ou uma arma semelhante, foi usado em pelo menos 100 ataques em que quatro ou mais vítimas foram feridas ou mortas na última década, de acordo com dados fornecidos pelo Gun Violence Archive.

Embora pesquisas mostrem que armas de pequeno porte estão envolvidas na maioria das mortes por arma de fogo nos Estados Unidos, fuzis AR-15 foram usados ​​nos massacres das escolas de Sandy Hook e de Parkland; do festival de música em Las Vegas; da igreja de Sutherland Springs; da boate Pulse em Orlando; da escola primária de Uvalde; do colégio Covenant School, em Nashville — e nesta semana, da agência bancária do Old National Bank, em Louisville.

Nada disso passou despercebido por Noir, que disse entender por que alguns americanos passaram a temer o fuzil. Mas, segundo ele, o poder de fogo semiautomático que faz os manifestantes antiarmas recuarem é a mesma coisa que atrai uma legião fiel de proprietários de AR-15.

“Entendo perfeitamente por que algumas pessoas podem sentir uma certa negatividade em relação a um AR-15”, afirma. “Mas os Pais Fundadores usaram seus rifles para defender este país. Nesse sentido, acho que era inevitável que o AR-15 se tornasse o ‘rifle da América’.”

Mudança na cultura de armas

Não faz muito tempo que a ideia de milhões de civis possuírem um rifle de estilo militar era impensável até mesmo para os membros da indústria.

Ryan Busse era um alto executivo de uma empresa de armas de fogo no início dos anos 2000. Naquela época, diz ele, o AR-15s e outras armas “táticas” de estilo militar eram relegadas aos fundos das mostras da indústria e acessíveis apenas a policiais e ex-militares.

“O resto da indústria não permitiria que essas coisas fossem exibidas na parte principal, de bom gosto e respeitável da exposição”, diz ele.

Ônibus escolar passando por um anúncio da NRA

Crédito, LIAISON AGENCY/GETTY IMAGES

Um ônibus escolar passa por um outdoor promovendo a convenção anual da NRA em 1999, após o massacre de Columbine

Entre 1994 e 2004, uma lei federal proibiu a fabricação, transferência e posse de armas de estilo militar para uso civil. Embora o presidente dos EUA, Joe Biden, tenha indicado essa legislação — aprovada quando ele era senador — como uma das razões pelas quais os EUA costumavam ter menos massacres, ela não limitava totalmente a posse de armas.

As armas que já eram propriedade de alguém não foram afetadas, e algumas formas de rifles semiautomáticos ainda eram permitidas no mercado.

Busse afirma que a decisão da indústria de evitar armas táticas foi porque havia um “estigma social” em torno delas, e os líderes concordaram que as armas de fogo deveriam estar nas mãos de militares e policiais treinados.

“Nunca tive uma. Para mim, as armas têm um propósito muito claro. São armas táticas de guerra, e eu não estava planejando embarcar em uma ação ofensiva militar”, diz ele.

Mas com o tempo, esse estigma começou a mudar, e uma nova era foi inaugurada com a Guerra ao Terror.

“Acho que o evento realmente crítico que define a cultura das armas hoje, embora as pessoas não o reconheçam, é na verdade o 11 de setembro”, avalia AJ Somerset, ex-soldado e jornalista canadense que passou grande parte da carreira documentando a indústria de armas de fogo.

Soldados carregando M-16s

Crédito, EPA-EFE/REX/Shutterstock

Em 2003, soldados americanos patrulharam Bagdá armados com fuzis M-16, a versão militar do AR-15

Os americanos que assistiam ao noticiário na TV viam soldados empunhando M-16s correndo para o campo de batalha. O rifle começou a aparecer em filmes, programas de TV e videogames sobre a guerra. E os soldados que voltavam para casa frequentemente compravam um AR-15 para ter um modelo civil do rifle que usavam em combate.

Segundo a National Shooting and Sports Foundation, entre 2002 e 2012, a produção de fuzis nos EUA cresceu mais de 160%.

“É difícil para qualquer cidadão americano argumentar contra algo que tem a bandeira enrolada em volta”, observa Busse.

Depois de mais de 20 anos na indústria, ele disse que estava farto. E saiu para se tornar consultor de legisladores e organizações que tentam virar o jogo da violência armada na América.

Embora a indústria costumasse valorizar a responsabilidade e tentasse limitar o acesso a armas como o AR-15, segundo ele, esses princípios acabaram “ruindo”.

“Minha confiança e ingenuidade também ruíram”, acrescenta.

Marketing baseado no medo

Especialistas dizem que a mudança cultural em direção ao AR-15 foi acelerada pela expiração da Proibição Federal de Armas de Assalto em 2004 e pela introdução de uma nova lei que dava imunidade à indústria de armas de fogo se as armas fossem usadas ilegalmente.

A “Lei de Proteção do Comércio Legal de Armas” foi a grande prioridade legislativa da NRA durante o governo Bush, de acordo com Robert Spitzer, professor da Universidade SUNY Cortland, nos EUA, e autor de vários livros sobre o debate a respeito do controle de armas no país.

A lei “fornece imunidade legal para vendedores de armas, negociantes de armas, fabricantes de armas e aqueles que transportam armas, para protegê-los de ações judiciais baseadas no dano que suas armas causam”, explica.

Depois que a lei foi assinada em 2005, Busse afirma ter notado uma sensação palpável de alívio — e impunidade — nas salas dos conselhos e nas reuniões do setor.

“Forneceu este escudo”, diz ele. “Eu digo que é como se você jogasse um monte de cocaína e barris de cerveja em uma festa universitária e dissesse: ‘Comporte-se!'”

Os fabricantes de armas começaram a comercializar armas e equipamentos de estilo militar — como coletes à prova de balas e carregadores de munição de alta capacidade — para o público.

Nomes de peso da indústria, como a Sturm, Ruger & Co, adicionaram o AR-15 à sua linha de revólveres e pistolas.

Para alguns, o rifle se tornou um símbolo de masculinidade. Em 2012, a fabricante Bushmaster lançou uma campanha publicitária que prometia que os compradores poderiam “considerar sua carteirinha de homem renovada” a cada AR-15 comprado.

Enquanto isso, os avanços na tecnologia aprimoraram as capacidades do fuzil para além do M-16 militar, observa Busse, tornando-o mais mortal.

Mesmo que a América não esteja mais travando uma “guerra contra o terror”, o medo em relação a crimes domésticos e o aumento da polarização política levaram a uma ênfase crescente na autoproteção.

“Na verdade, não pensamos tanto em armas quanto como nos sentimos em relação às armas”, disse Somerset, que é jornalista e ex-soldado.

Tudo isso, somado à Segunda Emenda, mostra como chegamos a um lugar em que, embora quase dois terços dos americanos digam que estão “insatisfeitos com as leis atuais sobre armas”, os legisladores têm dificuldade de aprovar uma nova proibição de armas de assalto, mesmo depois de massacres mortais, como os de Nashville e Kentucky, diz ele.

“Você tem essa mistura estranha que foi criada, não está realmente sob o controle de ninguém”, afirma. “É como se fosse um monstro de Frankenstein montado a partir de todas essas peças do personagem americano que está meio que cambaleando descontroladamente.”

Fonte: BBC