O repórter Rafael Balago, da editoria de Mundo e responsável pelo blog Avenidas, da Folha, aproveitou as férias para viajar pela Europa. Como um pesquisador de inovações urbanas e adepto do transporte coletivo, ele fez de ônibus o trajeto de A Coruña (bela cidade no noroeste espanhol) até Paris (no norte da França). Ele nos conta, abaixo, como foi passar o tempo nesta viagem de 20 horas, onde percorreu cerca de 1.460 km.

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Ao entrar no ônibus, havia quatro motoristas. Sinal de que a viagem seria longa, e de que estava no veículo certo.

Eram 13h05 de uma quarta-feira de junho em A Coruña, cidade no noroeste da Espanha. O ônibus verde e laranja que entrava na antiga e vazia rodoviária iria até Paris, em uma jornada pela costa norte do país e o sul da França, por 44 euros (R$ 184), em 20 horas. 

Para entrar, basta mostrar um QR code no celular. A compra do bilhete é feita com alguns cliques e não é preciso imprimir nada. 

Depois da compra, o aplicativo mostra onde está o veículo, antes dele chegar, e avisa sobre atrasos. O meu demorou 20 minutos, mas o alerta chegou uma hora antes. Deu pra almoçar com calma. 

No entanto, mesmo com quatro funcionários, não foi possível achar meu assento. A passagem indicava o assento 15A, mas só havia as fileiras de 1 a 12, a 14 e a 20. Meu lugar não existia.

“Senta em qualquer lugar”, disse um deles, com sotaque português. O coletivo estava com pouco mais de um terço dos lugares ocupados, então foi fácil escolher. Mas e se chegasse alguém? Corria risco de ficar sem lugar e ter de descer no meio da viagem? Essa dúvida me acompanharia ao longo do trajeto. Cada parada traria uma incógnita. 

Parada de ônibus – Rafael Balago/Folhapress

O trajeto teria sete escalas, mas havia três horas até a próxima. Sentei no 9A, uma janela. Os ônibus de viagem na Europa costumam ter vidros amplos. Um convite para colocar os fones de ouvido e ficar olhando a estrada e as paisagens.

O assento é confortável, mas geralmente menos estofado do que a categoria executiva dos ônibus do Brasil. 

Saindo de Coruña, passo perto das montanhas de Lugo, geralmente cobertas de neve no inverno. Rodamos menos de uma hora e há uma parada para almoço. Mas já?

Ao sair e olhar a pequena placa na frente com calma, entendo a razão: o veículo havia saído de Porto, em Portugal, às 8h da manhã, e passado por cidades como Braga, Vigo e Santiago de Compostela. Os quatro motoristas já estavam na estrada fazia tempo.

O lugar lembra os restaurantes de beira de estrada do Brasil: lanchonete, restaurante e prateleiras com lembrancinhas, doces, salgadinhos, revistas e produtos com cara de estarem ali faz tempo. Uma garrafa de água de 1,5 litro custa 2 euros (R$ 8,50). No supermercado, sai por 0,20 céntimo (R$ 0,85).

Enquanto os funcionários comem, todos esperam do lado de fora do coletivo, que foi trancado. Um alto-falante fraco sintoniza uma rádio espanhola de música pop. Os viajantes pouco conversam entre si. 

De volta à estrada, logo as montanhas dão lugar ao mar. A rota segue em direção à costa norte da Espanha, por uma estrada perto de praias. 

Vista da janela – Rafael Balago/Folhapress

As rodovias da Europa são, de modo geral, bem lisas e sem buracos, o que torna a viagem muito estável. Sem balançar, é fácil ler e dormir. Em pouco tempo passamos pela pequena Gijón, no principado de Asturias, e pela vizinha Oviedo, maior e com prédios mais escuros. 

Como o ônibus entra nas cidades para ir até as rodoviárias, dá para ver bastante de como são as ruas e prédios. Isso proporciona vários minutos de city tour sem precisar andar. 

A próxima parada será só em outra província, a Cantábria. A tarde avança, mas não se nota muito. Em junho, durante o verão europeu, há sol até 22h no norte da Espanha. Hora de gastar o tempo em conversas de WhatsApp e em redes sociais. O sinal 4G segue forte durante quase todo o trajeto, e há tomada embaixo de cada banco. 

Mais à frente, um jovem joga no celular. No fundo do coletivo, idosos em trajes esportivos também mexem em seus aparelhos. No banco ao lado, um dos motoristas dorme com a cabeça enfiada dentro da jaqueta.

Perto das 19h, outra pausa para comer. Agora, em uma lanchonete especializada em corbatas, doce folhado típico da região, que pode ser do tamanho de um biscoito ou até de um bolo de aniversário. Mudam também as lembrancinhas, os doces e salgados e os jornais à venda. 

De volta à estrada, logo ocorre uma breve escala em Santander, cidade de ruas tranquilas que empresta o nome ao banco. Depois dali, a estrada praticamente gruda no mar e é hora de ver o sol mais baixo iluminando a água e as praias praticamente desertas numa tarde de quarta-feira. Embora haja tempo para ler um livro inteiro, a paisagem acaba distraindo a leitura. 

Perto das 22h, ainda claro, chegamos a Bilbao, ou Bilbo, como indicam as placas bilíngues, que além do espanhol trazem os nomes em euskera, a língua do país basco. A rodoviária local fica em uma praça no meio da cidade. Lá sobe bastante gente, mas ninguém reivindica meu assento. 

Enquanto anoitece, mais uma parada, na vizinha Donostia, ou San Sebastián. Como escureceu, dá pra ver pouco da cidade. Perto de 23h, cruzamos a fronteira com a França. Um guarda francês para o veículo, sobe a bordo e faz uma inspeção visual. Não pergunta nada a ninguém e desce. O coletivo segue.

Perto de meia-noite, confirmo a suspeita de que não haverá pausa para comer. Janto os últimos croissants recheados (1 euro o pacote com dez no mercado) e barras de cereais (8 por 2 euros) e me ajeito para dormir. Ninguém sentou ao meu lado, então fica mais fácil. Antes de apagar, vejo muitos operários fazendo obras nas estradas francesas durante a noite. Há desvios e holofotes, mas nada capaz de deter a viagem. 

Acordo com o clarão de luzes acesas repentinamente. Eram 2h, e estou em Bordeaux. A luz amarelada ilumina calçadas e casas charmosas, que despertam a vontade de voltar ali um dia para conhecer a cidade melhor. Mais algumas pessoas sobem, mas o dono do 9A não aparece. Retomo o sono tranquilo, embora acorde algumas vezes para mudar de posição. O pescoço sempre acaba sofrendo em noites na estrada.

Desperto com a luz do dia, perto de 8h15, e me vejo no meio do rush matinal de Paris. O anda-e-para dura cerca de meia hora, tempo de ir ao banheiro, ajeitar as coisas e ver a Torre Eiffel surgir e sumir, distante, entre os prédios. Pouco antes das 9h, chegamos à estação de Bercy, ao lado do rio Sena, escondida em um parque

Hora de descer, pegar o mochilão no bagageiro e buscar o caminho do hostel. Em um pensamento puramente econômico, a noite no ônibus economizou uma diária de hotel. Mas o maior ganho foi poder passar horas espairecendo e olhando paisagens, além de  vislumbrar um pouco de várias cidades de uma só vez. Depois de tantas horas rodando, a sensação de estar muito longe de casa é ainda maior.

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Aviso aos passageiros 1: Caso você esteja em Paris com seus filhos, ou pretende levá-los para lá neste fim de férias, há museus na cidade com programação voltada aos pequenos.

Aviso aos passageiros 2: Aproveitando a pegada do Rafael Balago, que curte andar de bike, foi publicada recentemente uma lista com as 20 melhores cidades para se pedalar no mundo. E Paris é top 10!

Fonte: Folha de S.Paulo