Duas notícias do caderno de economia de ontem:

“Miojo deve impulsionar vendas do setor de massas em 2021, diz associação”

“Após feijão com arroz, café com leite também deve ficar mais caro para o brasileiro”

Nos últimos tempos, já se noticiou a alta absurda do arroz. A inflação descontrolada do óleo vegetal. A troca da carne bovina pelo ovo, por queda no poder aquisitivo. As filas de famintos na porta do açougue, à espera de doação de ossos que seriam descartados.

Está mais do que evidente que o quadro de fome é muito grave no Brasil. Está bem desenhada a culpa do governo, por omissão, incompetência e ação deliberada, por essa situação.

Cansa escrever sobre isso. Também cansa ler sobre isso. Mas é preciso continuar: esse é o papel do jornalismo.

Tenho lido, no Twitter, críticas ao tom e às chamadas das reportagens sobre a alta de preços na comida. Dizem que a imprensa “normaliza” a fome ao dar títulos acríticos às reportagens.

Gente, o jornalismo comporta uma série de subgêneros de escrita. Alguns são opinativos –este, como todas os textos que faço para o blog e a coluna, se encaixa nessa categoria. Mas o subgênero principal, a reportagem, que é a espinha dorsal do jornalismo, deve ser impessoal e retratar somente a opinião dos entrevistados.

Não dá para escrever o título de uma coluna noticiosa assim: “Brasileiros empobrecidos trocam macarrão por miojo; maldito governo é o culpado”.

A escolha de declarações aparentemente neutras pode ser mais contundente do que tirar uma opinião da cartola. Vejam esta frase, contida na mesma nota do miojo:

“A entidade atribui o desempenho da categoria ao aumento da prática de cozinhar em casa durante a pandemia, mas também ao preço mais baixo do produto em um cenário de queda na renda.”

A tal associação (mundial do macarrão instantâneo) admite que a pobreza é um fator de peso no aumento do consumo, mas não toma posições mais críticas por duas razões:

É uma entidade internacional, tem razão em não opinar sobre assuntos do Brasil;

Representam os fabricantes de miojo, então comemoram o lucro crescente (graças à pandemia e à pobreza).

Não é pouca coisa que o representante oficial dos macarrões instantâneos seja obrigado a declarar publicamente –pela obviedade das circunstâncias– que o setor fatura em cima da miséria alheia.

Outra ramificação do jornalismo é o texto de serviço. Um exemplo é a matéria que eu mesmo escrevi para o caderno “Comida”, com dicas para fazer ovo frito. Ouvi críticas por isso.

É evidente que o texto do ovo se relaciona com a inflação e a pobreza, mas não podemos dizer isso com todas as letras o tempo todo. Fica amargo. Fica chato. E, se o que temos é ovo, por que não um serviço para prepará-lo bem?

Está na hora de fazer uma matéria assim com o miojo.

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Fonte: Folha de S.Paulo