Meu pai não cozinhava. Em parte, porque minha mãe não o deixava se aproximar da cozinha.

Em uma de suas poucas aventuras no fogão, o velho quis fazer molho de morangos para o macarrão. Lógica elementar: tomates são vermelhos, morangos também, logo morangos podem substituir tomates no molho. Minha mãe tinha razão.

O negócio do meu pai era comer.

Ele comprava quilos e mais quilos de queijo parmesão. O estoque declinava em velocidade assombrosa, graças aos saques diuturnos e incessantes à geladeira.

Com seu humor peculiar, o pai mastigava dois ou três nacos de queijo fedorento e vinha bafejar no nariz dos filhos. Eu, surpreendentemente, sobrevivi à provação e ainda gosto de queijo. Não posso falar pelas minhas irmãs.

Mas nem só de brincadeiras de mau gosto vivia meu pai. Aliás, me esqueci de apresentá-lo.

Ele se chamava Earle, nome inglês bastante incomum no Brasil. Morria de vergonha do próprio nome –ainda mais porque seus irmãos eram o Paulo e o Luís. Meu avô João pirou num livro gringo qualquer e batizou o filho com o nome do autor. No campo da literatura, tinha também a tia Ceci.

Quando lhe perguntavam o nome, o Earle respondia “Nogueira”. Então vou chamá-lo assim daqui por diante. Não porque eu tivesse vergonha do nome do meu pai. Bem… eu tinha. Quando era criança. Hoje sinto vergonha dessa vergonha.

O Nogueira atravessava a cidade por um bom pão. Não viveu para ver a multiplicação das padarias hipsters de fermentação natural.

O Nogueira adorava pizza. Todos os fins-de-semana, me levava a um canto diferente para conhecer a pizzaria X ou Y, sobre a qual havia lido no jornal. A brincadeira acabou quando eu fiquei adolescente e troquei a companhia do pai por amigos e cachaça.

O Nogueira era engenheiro. Trabalhava numa metalúrgica em Santo Amaro, tinha colegas alemães. Apesar de morarmos no Cambuci, o playground do meu pai estava na zona sul profunda, entre os chacareiros germânicos.

As aventuras esporádicas da família Nogueira consistiam em viajar à orla da represa para encarar um chucrute. Eu, já um tanto besta, pedia marreco assado.

O Nogueira, antes de ficar irremediavelmente velho, era capaz de viajar a Campinas, Santos ou Itu só para almoçar. Eu ia ao lado da minha mãe, no banco dianteiro inteiriço do Opalão branco. Sem cinto, é evidente.

O Nogueira era louco por feijoada. Dona Ana (vulgo minha mãe) se esmerava na receita. Uma belíssima feijoada. Só no ano passado fui descobrir que ela mesma nunca deu bola para feijão preto com linguiça.

Eu também amo feijoada, herdei isso de meu pai.

A orelha de porco já está de molho. Se tudo tiver dado certo, estou de posse de lindos feijões orgânicos da feira do Parque da Água Branca.

Amanhã vou cozinhar uma feijoada em homenagem a Earle Ferraz Nogueira, que me deixou há três anos.

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Fonte: Folha de S.Paulo