A leitora Beatriz Pianalto de Azevedo já deu as caras aqui no blog, quando contou como foi conhecer o Butão, país asiático onde fez trekking e conheceu a fundo a cultura local.

Agora, ela nos conta sobre sua experiência em Guiné-Bissau, no oeste africano, para onde viajou a fim de se encontrar com seu filho.

Ela passeou tanto pela capital, Bissau, quanto por algumas ilhas, e nos brinda com um texto cheio de detalhes. Mais um pouco é possível sentir o gosto e o cheiro das frutas ou ouvir as vendedoras gritando pelas ruas.

Em tempos de coronavírus não podemos viajar, e muitas vezes nem sair de casa. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email [email protected].

*

O que não se faz por um filho, não é mesmo? Digo isso porque nunca em meus planos ou sonhos cogitara visitar a África, em especial Guiné-Bissau. Pra lá vou, contudo, matar as saudades do guri que está residindo no país.

O meu foco até então sempre fora as altas montanhas situadas nos Andes e Himalaia, suficientes pra me proporcionarem toda a dose de aventura esportiva desejada.

Só quando terminei a viagem, já no Brasil, foi que senti às ganhas a importância de ter conhecido aquela pequena região do continente africano. Porque dessa feita a aventura foi totalmente emocional!

Como inexiste voo direto do Brasil a Bissau, capital da Guiné-Bissau, escolho conexão em Lisboa, embora seja possível também via Marrocos ou Cabo Verde. Situada na costa ocidental da África e banhada pelo oceano Atlântico, o país exibe relevo predominantemente plano, com savanas no interior e planícies pantanosas ao longo da costa.

Seu litoral é constituído por um cordão de ilhas que forma o arquipélago dos Bijagós. Pouco maior que o Alagoas, a população não ultrapassa 1 milhão e 800 mil pessoas e 2/3 dos guineenses vivem abaixo da linha de pobreza.

O clima tropical, quente e úmido, apresenta duas estações: a da chuva (junho a novembro) e a da seca (dezembro a abril). Guiné-Bissau, como entidade soberana, é ainda um bebê: apenas em 1973 logrou declarar sua independência de Portugal!

A população divide-se em 20 etnias, destacando-se os fulas, mandingas, mandjacos, balantas e bijagós. O estilo musical predominante chama-se gumbé.

As crenças tradicionais africanas convivem bem com o islamismo professado por metade da população. A economia depende especialmente da piscicultura e da agricultura, destacando-se como principais produtos de exportação castanha de caju, amendoim e peixes.

A capital

As ruas de Bissau são em sua maioria de chão batido, poucas com calçamento, e algumas sombreadas por frondosas mangueiras. Embora localizada no estuário do rio Geba, é impraticável banhar-se em suas águas pois é zona de mangue… uma pena!

Não canso de admirar a coloração de pele dos guineenses: tal qual pérola negra (licença, viu, Luiz Melodia?), brilha sedosa sem mescla alguma. Movimentada, a zona central da capital, chamada praça, é ocupada por dezenas de vendedoras de produtos alimentícios envoltas em trajes coloridos que, sentadas às calçadas, apregoam em voz alta suas mercadorias: mariscos, polvos, lulas, camarões, lagostins, peixes, carne de gado, galinhas vivas, fatias de coco, bananas, laranjas já descascadas, mamões, abacaxis em rodelas, ovos cozidos, castanhas de caju, amendoim.

Homens escarrapachados em cadeiras trocam euro por franco CFA, moeda local, por um preço ligeiramente melhor do que os estabelecimentos bancários. Mulheres passam por mim carregando comidas típicas em bacias de plástico aninhadas sobre as cabeças.

Como vim a descobrir mais tarde, foram elas que, utilizando este astucioso expediente, conseguiram repassar armamento e munição aos soldados guineenses na luta pela independência contra os portugueses no século passado.

Dos pratos típicos provo, além do peixe grelhado, servido inteiro, caldo de mancara com citi (galinha com creme de amendoim), futi (quiabo, arroz, farinha de peixe seco, pimenta em conserva e azeite de dendê) e caldo de chebem (caldo feito com a fruta do dendezeiro) com peixe.

Das frutas mais marcantes destaco não só o sabor acidulado do suco feito do fole quanto a suavidade dos sucos do veludo e da cabaceira. De bebida alcoólica, tem-se o vinho de palma, extraído da seiva de algumas espécies de palmeiras.

Ilhas

Além de Bissau, conheço das 88 ilhas que formam o arquipélago de Bijagós as encantadoras ilhas de Bubaque e Rubane. Devido à sua biodiversidade, desde 1996 Bijagós foi declarada pela Unesco Reserva Ecológica da Biosfera, existindo dois parques nacionais: o de Orango e o Marinho de João Vieira e Poilão.

Pousadas apenas em Bubaque, Rubane, João Vieira, Orango e Kere. Há quatro meios de transportes para se ir às ilhas: ferryboat, piroga, avião e lancha. Escolho o ferryboat que, além de comportar nos dois deques pessoas e bagagens, transporta ainda cachorros, galinhas, porcos e carneiros!! Uma farra!

Um pequeno bar vende bebidas e lanches. Há passageiros, contudo, que levam viandas, geralmente peixe com arroz que comem durante a viagem.

Normalmente, os 73 km de Bissau a Bubaque são feitos em 4 horas e ao longo da travessia, na vastidão do Atlântico, enxergo duas ilhas. No porto, a azáfama é muita, gente esperando parentes e amigos, enquanto mulheres vendem frutos do dendezeiro, peixes, mariscos, mexilhões e outros frutos do mar.

Embora haja pousadas em Bubaque melhores que a pousada Cruz Pontes, escolhi essa porque o preço era mais acessível ao meu bolso.

O ar refresca um pouco à noite, já durante o dia é deliciosamente quente. Vou a Bruce, praia localizada na ponta sul da ilha de Bubaque, de bicicleta, possível de ser alugada perto da praça.

São 15 km de estrada plana, chão batido, cercada por densa vegetação. Ao longo do caminho, em ambos os lados da estrada, despontam aldeias, chamadas tabancas, cujas moradias arredondadas feitas de adobe são cobertas com palha.

Crianças saem correndo das casas gritando “branco, branco” quando nos vêem passar. São encantadoras e não se negam em ser fotografadas, ao contrário de suas mães, que fazem gestos negativos quando percebem que estou apontando a câmera em suas direções.

Dentre as pousadas construídas a 50 metros do mar, escolho almoçar na de Mana Fatu, comendo uma suculenta garoupa com batatas fritas.

No terreiro da propriedade, desenvolvem-se os preparativos de uma festa. Enormes tachos contendo arroz com carne, dobradinha e chep jhed (molho feito com pedaços de cebola, pimenta, cenoura e pimentão) cozinham sobre fogueiras ao ar livre.

Vez por outra mulheres com compridas varas de madeira remexem o interior dos panelões donde saem fumarolas e bons odores. Pena que não posso ficar porque tenho de entregar a bicicletas às 19 horas.

Aproveitando que a ilha de Rubane é pertíssimo de Bubaque, vou de lancha almoçar no restaurante do sofisticado resort Ponta Anchaca. Um espetáculo o bailado das gaivotas voando sobre a água esverdeada do canal que separa as duas ilhas.

Ao entardecer, dois espetáculos: a oeste, o pôr do sol torna o céu deliciosamente incandescente, ao passo que, a leste, a lua cheia brilha no céu azul. À noite, assisto ao show de kundere, estilo musical típico dos bijagós. O ritmo e a dança são frenéticos, exigindo extraordinário vigor e preparo físico.

Costurados às vestimentas das dançarinas objetos de metal e vidro além de pulseiras de madeira atadas aos tornozelos complementam a percussão. Emocionante reconhecer a origem do samba no batuque dos tambores e nos passos de dança!

Confesso que o primeiro impacto, quando aqui estive pela primeira vez, em 2018, foi negativo, considerando que Bissau não é nem bonita tampouco limpa, embora suas ilhas sejam deslumbrantes.

Contudo, ao libertar do convencionalismo meu olhar limitado por padrões ocidentais de beleza, passei a ver Bissau com outros olhos e compreender que o belo está no detalhe do alfaiate pedalando sua máquina de costura instalada sob uma marquise da avenida Amilcar Cabral.

O belo está, principalmente, no povo tão gentil, alegre e curioso, ainda mais quando percebe que você é brasileiro. Delicioso escutar, quando passo pelas esquinas, a cantilena das vendedoras de frutas, entoando “banana, banana”, sentadas nas calçadas sob o sol inclemente.

O belo é o engenhoso pedinchar do moleque ao dizer “ofereça-me 500 francos, tenho fome”. O belo é também ouvir os guineenses falando vários idiomas conforme a etnia a que pertencem. E são tantas!

Tão bom passear por Bissau Velha e ver nos decadentes prédios o fim duma era que, felizmente, acabou: a do jugo português. O belo, graças a deus, é saber que nós, brasileiros, temos no povo africano uma das matrizes de nossa cultura!

*

Aviso aos passageiros 1: A enfermeira infectologista Rebecca Alethéia compartilhou aqui sua reflexão sobre as mulheres negras viajantes e sua (r)existência no mundo

Aviso aos passageiros 2: O leitor Marcelo Lemos já esteve na África algumas vezes e contou ao blog algumas de suas experiências, como subir montanhas em Ugandachegar ao topo do Kilimanjaro, na Tanzânia

Fonte: Folha de S.Paulo