IDIANA TOMAZELLI
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O ajuste fiscal prometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu ministro Fernando Haddad (Fazenda) pode significar uma restrição maior do que a observada sob a vigência do teto de gastos, regra fiscal criada no governo Michel Temer (MDB) e que foi alvo central das críticas do PT nos últimos anos.

O quadro é indicado em projeções econômicas do próprio governo. Entre 2023 e 2026, a previsão é reduzir a despesa primária de 19,1% para 17,7% do PIB (Produto Interno Bruto), indica o PLDO (projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2024, elaborado pelos ministérios da Fazenda e do Planejamento e enviado em abril ao Congresso Nacional.

Ainda há dúvidas no mercado sobre a capacidade de cumprir o ajuste prometido, mas, se realizada, a queda de 1,4 ponto percentual do PIB é maior do que a redução de 0,4 ponto observada no indicador num mesmo horizonte de quatro anos, entre 2016 (ano-base do teto de gastos) e 2019. No período, a despesa como proporção do PIB saiu de 19,9% para 19,5%.

As estimativas futuras podem oscilar com diferentes premissas de crescimento, inflação ou ritmo de gastos. Em relatório mais recente, divulgado neste mês, o Tesouro Nacional previu uma queda da relação entre despesa e PIB de 19% neste ano para 18,1% ao fim do mandato do governo de Lula.

Mesmo com variações nos números, economistas avaliam que as metas traçadas por Haddad podem se mostrar mais ambiciosas do que o obtido sob o teto.

Se para o mercado essa pode ser uma demonstração positiva de rigor do novo arcabouço fiscal, a constatação pode criar problemas políticos para o ministro da Fazenda, que volta e meia é alvo de fogo amigo do PT ao defender medidas de ajuste nas contas.

No diagnóstico dos economistas, o aperto sinalizado pelas projeções não está no desenho do novo limite de gastos –que é mais flexível do que o teto, ao permitir um crescimento das despesas acima da inflação entre 0,6% e 2,5% ao ano–, mas nas metas fiscais arrojadas.

Definidas pelo ministro e apresentadas em entrevista a jornalistas no fim de março, elas preveem sair de um rombo de até 1% do PIB neste ano para um déficit zero já em 2024. Em 2026, o objetivo é alcançar um superávit de 1% do PIB (algo como R$ 134 bilhões, segundo parâmetros atuais).
Desde a apresentação dos números, agentes do mercado têm questionado a real capacidade do governo de entregar esses objetivos.

Diferentes interlocutores do Executivo reconhecem que o ajuste imposto pelas metas de primário pode ser mais duro do que se admite publicamente. Essas pessoas avaliam que o quadro pode colocar Haddad diante de um dilema: bancar a briga com setores do governo e do partido para manter as metas ou arriscar a credibilidade da equipe econômica flexibilizando os objetivos da política fiscal e aderindo a um processo mais lento de reequilíbrio das finanças públicas.

Os primeiros indícios públicos desse desafio surgiram no Relatório de Projeções Fiscais do 1º semestre, publicado pelo Tesouro Nacional.

Em 87 páginas, o órgão listou uma série de condições nada triviais para assegurar o cumprimento do alvo da política fiscal, que incluem turbinar a arrecadação com R$ 162,4 bilhões em receitas permanentes, contingenciar entre R$ 56 bilhões e R$ 76 bilhões ao ano e mexer em vinculações que, a partir de 2024, resultarão em crescimento acelerado de despesas em saúde e educação -achatando as demais áreas.

A necessidade de bloquear despesas para respeitar a meta é justamente uma das possíveis causas para a queda da relação despesa/PIB ao longo dos anos, a despeito da permissão no arcabouço para o crescimento real dos gastos. Isso significa que o governo terá espaço sob o limite, mas não poderá gastar para evitar o descumprimento dos objetivos traçados. Os bloqueios devem recair sobre gastos de custeio e parte dos investimentos.
“Quem está ditando a velocidade do ajuste é a meta do Haddad, que quer sair de um déficit de 1,3% do PIB neste ano, nas nossas estimativas, para um superávit de 1% em 2026. Isso dá um ajuste de 2,3% do PIB em quatro anos”, afirma o economista Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal da FGV Ibre. Segundo ele, até mesmo o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, um dos criadores do teto, prometeu na prática um ajuste menor.

“As metas que Haddad está defendendo são ambiciosas, é uma programação fiscal bastante desafiadora”, diz Pires. Para ele, embora o governo tenha tido vitórias importantes na busca de novas receitas, há risco de frustração nos resultados.

“O novo arcabouço fiscal tem a mesma questão do teto de gastos, que prometia todo o ajuste pelo lado da despesa e gerou uma certa fadiga. O arcabouço promete todo o ajuste pelo lado das receitas, e isso pode gerar uma fadiga de ajuste também”, alerta.
A vantagem da nova regra é que o estouro da meta aciona automaticamente medidas de contenção de gastos. Além disso, os objetivos da política fiscal voltam a ser gravados na LDO, mais simples de ser alterada caso o governo assim prefira. No caso do teto de gastos, como se tratava de uma norma constitucional, houve uma sucessão de PECs (propostas de emenda à Constituição) para ajustar o limite sempre que havia estrangulamento de políticas e resistência a cortes nas demais áreas.

A economista Julia Braga, coordenadora de Acompanhamento e Estudos da Conjuntura Econômica no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada), avalia que o alcance dos números projetados pelo governo tem um viés recessivo, uma vez que a redução de gastos públicos dificilmente seria preenchida na mesma magnitude pelo setor privado.

“Quando olhamos o detalhamento das variáveis fiscais, a despesa total cresce 3% em termos reais em 2024 em relação a 2023, mas só 0,3% em 2025 e 0,1% em 2026. É uma taxa de crescimento muito baixa, quase como se estivesse com a mesma regra do teto de gastos”, afirma.

Segundo ela, o primário estipulado por Haddad é “muito ambicioso” não só por exigir um ingresso forte de receitas, mas também por impor o risco de contingenciamentos.
“A gente passou por uma experiência parecida com o teto de gastos, que chegou a um ponto de quase shutdown [apagão]. Acho muito perigoso e arriscado estabelecer uma meta tão ambiciosa, porque existe um custo econômico e social potencialmente alto”, afirma.

Para efeito de comparação, a projeção de uma despesa de 17,7% do PIB remonta a um patamar semelhante ao gravado na proposta de Orçamento de 2023 (17,6% do PIB), enviado pelo governo Jair Bolsonaro (PL) com uma série de cortes em políticas sociais.

Segundo Julia Braga, um maior gradualismo no processo de ajuste seria “mais interessante”. Ela também defende mudanças em parâmetros do arcabouço fiscal, para manter fixa a despesa em relação ao PIB e permitir um crescimento real dos gastos em proporção maior do que 70% da alta de receitas, como previsto no texto atual.

O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello, diz à Folha que os modelos de projeção indicam cenários às vezes levados “muito ao pé da letra”. Ele cita o exemplo da dívida pública, indicador que depende do resultado das contas, mas também do ritmo de crescimento do PIB e da taxa de juros.

“São variáveis bastante incertas, certo? Então, quando a gente constrói essas projeções, elas estão sujeitas a muitas chuvas e trovoadas, até porque os modelos têm muita dificuldade de captar os mecanismos de retroalimentação dinâmica. Vai crescer mais o país. Se crescer mais, então o gasto em proporção do PIB vai cair, porque o denominador cresce. Mas ao mesmo tempo você fica com muito mais facilidade em cumprir o primário”, afirma.

Na avaliação de Mello, o arcabouço mantém o ritmo de avanço dos gastos em até 2,5%, em linha com o crescimento potencial da atividade econômica do país.

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