SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A prevalência de AVC (Acidente Vascular Cerebral) entre pessoas abaixo de 50 anos quase dobrou no período da pandemia de Covid-19, acendendo o alerta para a doença que lidera as causas de internações e mortes no país e que sempre esteve associada a idades mais avançadas.

Dados preliminares compilados pela Organização Mundial de AVC (World Stroke Organization, a WSO) mostram que a taxa de pessoas com menos de 45 anos acometidas pela doença passou de 10%, antes da crise sanitária, para 18%, no fim do ano passado.

Para neurologista brasileira Sheila Martins, 52, que assumiu a presidência da WSO em novembro, a piora dos hábitos de vida entre os mais jovens e a interrupção de tratamentos por aqueles que já tinham fatores de risco, situações que se intensificaram durante a pandemia, estão entre as hipóteses para o aumento.

“Estamos vendo muitos jovens com pressão alta, diabetes, colesterol elevado, obesidade, inatividade física, tabagismo, consumo exagerado de álcool e muito estressados. São fatores de risco que levavam ao AVC aos 60, 70 anos, e que foram puxados para mais cedo”, explica a médica, chefe do serviço de neurologia e neurocirurgia do Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre (RS) e professora da UFRGS (Universidade federal do Rio Grande do Sul).

A própria infecção pelo vírus Sars-CoV-2 também pode ter algum papel nesse aumento de casos, uma vez que a Covid-19 é uma doença trombogênica, ou seja, ela se caracteriza por ter um alto risco de formação de coágulos. “Nós vimos pacientes jovens com AVC sem causas [clássicas] aparentes, mas que tinham tido Covid”, diz.

Nas últimas três décadas, o AVC liderou as causas de mortes no Brasil, mas após a adoção de um programa nacional de enfrentamento da doença, em 2011, em que foram criados centros de enfrentamento da doença, passou para o segundo lugar. Em 2022, porém, voltou à liderança.

“Batemos o nosso recorde de casos de AVC no país, cerca de 105 mil. Normalmente, tínhamos 100 mil, 102 mil”, diz Martins, primeira mulher latino-americana à frente da WSO, maior organização médica mundial dedicada à doença, que reúne 4.000 membros individuais e 90 sociedades científicas em todos os continentes, com mais de 55 mil especialistas.

Além da piora dos hábitos e dos reflexos da doença, a neurologista lembra que muitas pessoas deixaram de procurar os hospitais temendo a Covid-19 e também houve uma desestruturação dos serviços de AVC para dar lugar ao atendimento emergencial da infecção.

No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, ligado à UFRGS, eram atendidos cerca de 700 de AVCs por ano. Em 2020, foram mil. Em 2021, 1.200. Em 2022, deve repetir esse número ou ficar um pouco acima.

Sheila Martins está coordenando uma força-tarefa internacional com a meta de reduzir pela metade o número de mortes pela doença, com capacitação dos profissionais da saúde para o atendimento e tratamento rápido e adequado dos casos. No Brasil, ela foi uma das responsáveis pela implantação dos centros de AVC em hospitais públicos e privados e pela elaboração de um programa nacional.

“Identificar rapidamente os sinais e garantir o socorro ágil evita o comprometimento mais grave, que pode deixar sequelas permanentes como redução de movimentos, perda de memória e prejuízo à fala, além de diminuir drasticamente o risco de morte”, explica.

Existem dois tipos de acidente vascular cerebral: o isquêmico, que ocorre quando falta sangue em alguma área do cérebro, responsável por 80% a 85% dos casos; e o hemorrágico, quando uma artéria ou veia se rompe.

A trombólise endovenosa, que consiste em uma injeção que dissolve os coágulos que entopem o vaso sanguíneo, é um dos principais tratamentos do AVC isquêmico. Ela pode ser aplicada em até 4,5 horas após o AVC.

Para os casos mais graves, há indicação da trombectomia mecânica, em que um cateter é introduzido até o ponto da oclusão responsável pelo AVC. Na ponta do cateter há um “stent retriver” (que é retirado), capaz de aderir ao trombo e resgatá-lo, desobstruindo assim o vaso sanguíneo.

O procedimento pode ser feito até 24 horas após os primeiros sintomas da doença. No Brasil, ele foi aprovado pela Conitec (comissão de incorporação de tecnologias no SUS), mas ainda aguarda publicação de portaria do Ministério da Saúde.

A neurologista diz que é importante também que a população esteja informada sobre os sintomas do AVC e, ao senti-los, busque rapidamente um hospital preparado_não necessariamente o mais próximo. “Na maior parte dos lugares, é melhor chamar uma ambulância, o Samu 192, que está preparado para direcionar o paciente para os centros de AVC no país, tanto públicos quanto privados.”

Segundo ela, a WSO tem apoiado os países de baixo e médio desenvolvimento na implantação dos serviços de AVC e na capacitação dos profissionais. “Temos um grupo internacional de experts que nos apoia nesses locais por meio de um aplicativo de telemedicina que conseguimos por doação. Em tempo real, um especialista de qualquer lugar do mundo consegue ver a tomografia, discutir o caso com um médico na Etiópia e orientar o tratamento.”

Em países mais pobres, afirma a médica, nem o tratamento mais simples, a trombólise endovenosa, está disponível. “Discuto com os ministros de saúde, os gestores locais, mostrando que o tratamento é custo efetivo. O paciente tem alta hospitalar mais rápida, têm menos sequelas e volta para o trabalho.”

Em conjunto com a OMS (Organização Mundial da Saúde), a neurologista também tem trabalhado em um projeto que prevê adoção de políticas de saúde voltadas às mudanças de estilo de vida, oferta de medicamentos gratuitos no controle de doenças, como a diabetes e hipertensão, entre outros.

“Precisa ter uma reestruturação do cuidado cardiovascular na atenção primária com prevenção monitorada. A pressão arterial tem que ser medida por todos os profissionais. Se o paciente vai buscar receita, remédio, vai ser vacinado, tem que medir a pressão dele. Se estiver fora do alvo, tem que investigar, tratar.”