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O recuo das tropas russas nos arredores de Kiev permitiu ao mundo ver a selvageria do Kremlin com seus próprios olhos e ouvir o seu cinismo com seus ouvidos.

O Kremlin diz que nenhum residente dos subúrbios de Bucha e Irpin sofreu violência pelos russos. As fotos mostram cadáveres espalhados pelas ruas e pilhas de sacos pretos. Há um homem baleado enquanto andava de bicicleta. Há automóveis destroçados com corpos dentro.

A Procuradoria-Geral ucraniana relatou 410 cadáveres de civis, mas o número seguramente é maior. Autoridades de Bucha relatam pelo menos 280 em valas comuns. Em um bosque na vila de Motyzhyn foram exumados os corpos da prefeita, seu marido e seu filho, assassinados, segundo as autoridades, após se recusarem a cooperar com os russos.

A imprensa e organizações independentes registram evidências de execuções sumárias. Há corpos com mãos atadas ou pólvora no rosto, indicando tiros à queima-roupa, além de sinais de tortura e relatos de espancamentos e estupros.

O Kremlin declara que “as fotos e vídeos publicados pelo regime de Kiev em Bucha são só mais uma provocação”, uma “farsa” para desviar a mídia ocidental. Mas nenhum especialista em defesa ou direitos humanos está surpreso. “Qualquer um que diga que Bucha é resultado da brutalização ou de um comportamento delinquente está errado”, disse Jack Watling, do instituto britânico Royal United Services. “Esse era o plano. Foi premeditado. É consistente com os métodos russos na Chechênia. E, se o Exército russo tivesse sido mais bem-sucedido, haveria muitas outras cidades como ela.”

O pior está por vir. Há indícios de tropas e mercenários chechenos próximos a Kiev. Mas é sobretudo no leste, onde Vladimir Putin está concentrando esforços, que provavelmente atuam mercenários sírios e do Grupo Wagner, uma milícia diretamente conectada ao Kremlin. Seus paramilitares já serviram na invasão da Ucrânia em 2014. Desde então, passam-se por soldados e separatistas russos na região de Donbass, e já auxiliaram ditadores favoráveis a Putin na Síria, Líbia, Mali, República Centro-Africana, Sudão e Venezuela.

Mykhailo Podolyak, conselheiro da presidência ucraniana, disse que a região de Kiev foi um “inferno do século 21”: “Os piores crimes do nazismo voltaram à Europa”.

O secretário-geral da ONU pediu uma investigação por crimes de guerra. O presidente francês, o chanceler alemão e o presidente do Conselho Europeu apontaram nas atrocidades indícios de crimes de guerra, e prometeram retaliar com mais sanções. Em março, após o bombardeio de uma maternidade e um teatro repleto de civis em Mariupol, o presidente norte-americano, Joe Biden, já havia chamado o presidente russo de “criminoso de guerra”. Tornou a fazê-lo agora.

As evidências se acumulam. Mas Putin e seus correligionários estão longe de uma punição. Mais de 1 milhão de pessoas, incluindo dois ex-primeiros-ministros britânicos, peticionou por um tribunal nos moldes de Nuremberg. O crime de agressão, sob jurisdição da Corte Internacional de Justiça, que julga Estados, parece claro. Mas qualquer sanção depende do Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia tem poder de veto.

O Tribunal Penal Internacional, que julga indivíduos, investiga crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Mas as ordens criminosas precisam ser documentadas, e, mesmo que fossem, a Rússia não reconhece a Corte e não entregará cidadãos russos, muito menos dos altos escalões.

Isso não significa que os processos não devam avançar. Se as ferramentas forenses não forem empregadas agora, muitas evidências se perderão. 

Muitos dirão que jogar Putin contra as cordas é contraproducente para a paz. Mas a história mostra que apaziguar tiranos só lhes dá fôlego para perpetrar mais atrocidades. A legitimação das Cortes pode revigorar os ucranianos, impulsionar o auxílio do Ocidente e desencorajar soldados e oficiais russos. De resto, por remota que seja no presente, há sempre a possibilidade de que no futuro o povo russo deponha Putin e faça justiça a seus irmãos ucranianos, entregando-o ao banco dos réus.

Fonte: MSN

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