A arte virtual existe há muito tempo. Já na década de 1960, artistas começaram a usar a tecnologia em suas obras por meio de experiências com computadores, muitas vezes em colaboração com grande engenheiros. Nomes como o matemáticos alemães Georg Nees e Frieder Nake, ou o cientista da computação americano Kenneth Knowlton são considerados como pioneiros desse movimento. Mas, ainda assim, a maior parte das obras ainda eram feitas em papel, serigrafia e vídeo.

Precursores, eles abriram as portas, cinco décadas mais tarde, para novos artistas com novas formas de criação. Trocando em miúdos, com a invenção do NFT, espécie de certificação digital que cede a titularidade de uma obra de arte a um comprador – embora seu uso e reprodução continuem liberados para quem bem entender na internet – , as artes virtuais fizeram todo o sentido.

Mais caro que uma obra de Rafael

Por exemplo, a colagem de cinco mil imagens intitulada “Beeple’s Everydays – The First 5000 Days”, do artista Mike Winkelmann, mais conhecido como Beeple, foi vendida esse ano por US$ 69,3 milhões num leilão da Christie’s, estabelecendo o recorde de terceiro maior preço para um artista vivo, atrás apenas de Jeff Koons e de David Hockney – e mais valorizado que a maioria dos mestres da pintura, incluindo Rafael.

Mas a obra de arte, em si…não existe. Pelo menos, no plano físico. O que foi vendido foi seu NFT (token não fungível, tradução livre) associado à obra.

“Everydays” foi comprado pelo programador Vignesh Sundaresan, um investidor em moedas digitais e fundador do projeto Metapurse NFT, também conhecido no meio online por seu pseudônimo MetaKovan. Sundaresan pagou pela obra de arte exatos 42.329 Ethereum. Nesse caso especifico, Sundaresan recebeu os direitos de exibição da obra de arte, mas não recebeu seus direitos autorais.

Sinal dos tempos

Mas o NFT não é novidade. Os primeiros certificados datam de 2017, autentificando os “CryptoPunks”, coleção de dez mil retratos diversos em pixel art, e os “Curio Cards”, 30 séries exclusivas de cartões de sete artistas diferentes.

Todos os dois leiloados pela Christie’s neste ano por US$ 16,9 mi e US$ 34,4 milhões, respectivamente. “Não é que estávamos interessados, mas acabamos ‘ficando interessados’ nos NFTs. Para ser honesto, eles nos procuraram”, afirma Noah Davis, especialista e chefe de arte digital da Christie’s New York.

“Desde a venda de ‘Beeples Everydays’ em março deste ano, a Christie’s vendeu mais de 140 milhões de dólares em NFTs até o momento, um número que francamente ainda me surpreende”, revela Davis.

Uma segunda obra do artista Beeple, a escultura generativa conhecida como “HUMAN ONE”, misturando arte híbrida digital e física, foi vendida por US$ 28,9 milhões em novembro.

A obra HUMAN ONE, de Beeple, vendida por US$ 28,9 milhões / Divulgação

Mas como a Christie’s seleciona os artistas digitais com quem vai trabalhar? “Selecionamos cuidadosamente os artistas com base em uma variedade de fatores. Não apenas procuramos artistas com públicos estabelecidos na comunidade criptográfica, mas também pretendemos envolver artistas ou projetos cujos esforços contribuam para conversas culturais significativas mais amplas”, explica Davis.

Na próxima venda da casa de leilões, estarão presentes dois “CyberKongz” (avatares sociais únicos e gerados aleatoriamente para experiências online). Os rendimentos serão doados para beneficiar o Parque Nacional de Virunga, no Congo, o parque mais antigo da África e o último bastião dos gorilas selvagens do planeta.

Só se for em moeda digital

Para se ter uma ideia da investidura do mundo da arte no digital, não basta a obra ser virtual, ela tem que ser vendida em criptomoeda. “Nossa primeira aceitação de moedas virtuais foi na venda do ‘Beeple’s’, feita em dólares e em Ethereum. Desde então, também aceitamos pagamentos em Bitcoin para determinados lotes e continuamos a aceitar Ethereum para todas as ofertas de NFT”, explica Davis.

“Foi o caso da venda dos ‘Curio Cards’ em outubro, feita inteiramente em Ethereum durante a estreia mundial de uma grande casa de leilões no mundo financeiro digital”, explica Noah.

Apenas dois meses depois, ela embarcou no primeiro leilão virtual com suporte de blockchain (banco de dados que mantém uma lista de registros protegidos contra adulteração ou modificação por nós de armazenamento) “Christie’s X OpenSea”, em colaboração com o maior marketplace de NFT do mundo.

Na venda, estavam obras virtuais de nomes como Andre O’Shea, Alpha Centauri Kid, Ash Thorp, Beige, Blake Kathryn, CyberKongz, DotPigeon, EtherRock, FriendsWithYou, Fvckrender, GMUNK, Joshua Davis, KESH, Krista Kim, Maciej Kucera, Mad Dog Jones, Tom Sachs, Olive Allen, Oseanworld, Victor Mosquera, WhIsBe e Recur.

A arte do futuro?

“Arte virtual, leilões de arte e transações em bitcoin já existiam muito antes da recente consolidação do conceito de NFT no mundo da arte. Por isso, não vemos uma mudança estrutural, seja no fazer artístico, seja no mercado”, afirma Fernando Ticoulat, sócio da Art Consulting Tool, empresa de consultoria de arte em São Paulo.

“Prefiro pensar que estamos observando uma profunda reorganização e sistematização do mercado de arte como um todo, e não apenas no universo digital. Mas, para nós, não chega a ser uma revolução, já que esta implicaria uma reforma radical da estrutura”, diz.

Se engana quem pensa que o mercado da arte tomou esse rumo por causa da pandemia, e da impossibilidade de se deslocar até as galerias de arte físicas. O NFT já estava presente antes desse período pandêmico.

“A onda que vemos agora não foi uma resposta à pandemia, mas uma coincidência importante, pois surgiu justamente num momento em que todos estávamos trancados em casa em frente ao computador, o que favoreceu uma ampla tomada de conhecimento do vocabulário e dos mecanismos próprios do mundo cripto e do blockchain”, conta Ticoulat.

A verdade é que já se comprava obras de arte sem sair da frente da tela, seja através do mecanismo NFT ou de leilões online. A pandemia simplesmente acelerou esse processo.

“De fato, o mercado da arte era pouco digitalizado quando comparado com outros segmentos, e a pandemia o obrigou a tomar medidas nesse sentido. No entanto, não houve alteração na estrutura do mercado”, continua o empresário. Para ele, antes do advento do computador, comprava-se objetos colecionáveis por catálogo, em seguida por pdf, e agora por NFT. Os três são modos muito similares de publicidade e de venda de colecionáveis.

A empresa, que presta consultoria na compra e venda de obras de arte, toca no assunto “NFT” frequentemente com seus clientes. “O NFT nada mais é que um certificado digital. Existe uma confusão generalizada que o percebe como uma mídia artística, tal como pintura ou fotografia. Isso ofusca os principais benefícios das possibilidades do NFT (e do blockchain) no universo de objetos raros e colecionáveis”, explica.

“Os artistas fazem obras de arte digitais há muito tempo, em formato jpg, png ou gif, e as galerias as comercializam. A obra era entregue ao comprador em um pen drive, talvez e-mail, e o certificado em papel enviado à casa de quem adquiriu. Esse certificado também é um token não fungível que representa posse e titularidade da obra de arte”, detalha Fernando.

Ou seja, funcionando como um certificado digital, que pode se referir a uma obra virtual ou física, o NFT eliminou apenas o certificado em papel, mas o resto continua igual.

Avatar de Mark Zuckerberg em apresentação do metaverso / Reprodução/Facebook

Finalmente, a longo prazo, o NFT pode trazer muitos benefícios, como o fim da falsificação. “Esse tipo de certificação pode acabar com a falsificação de arte, assim como garantir direitos patrimoniais de autor. Isso sim seria uma revolução no mercado. Nesse sentido, temos desenvolvido conversas com artistas, galeristas e colecionadores sobre certificar todas suas obras no blockchain”, afirma o empresário.

É nesse sentido que o NFT revoluciona o mercado da arte: proveniência, transparência, rastreabilidade, propriedade fracionada, garantia de direitos de autor. Ou seja, tudo que não envolve o fazer artístico em si.

Com a criação do metaverso, mundo virtual fictício com interação em 3D – termo já adotado por Mark Zuckerberg em discurso divulgado quando do anúncio de mudança da marca do Facebook para Meta, feito no final de novembro -, tudo pode mudar muito daqui para a frente.

“Como os artistas vão se utilizar desses mecanismos ou como obras serão comercializadas nesses universos são algumas das perguntas que fazemos. E claro, observando o desenvolvimento da história da arte, sempre em consonância com o desenvolvimento da própria humanidade, o céu é o limite: quem sabe teremos cada vez mais obras de arte holográficas em acervos e coleções?”, questiona Fernando.

E a arte brasileira nisso tudo?

Falando de arte digital made in Brazil, Fernando cita o brasileiro Eduardo Kac como um dos pioneiros nesse campo, desenvolvendo obras virtuais e holográficas desde os anos 1990. “Atualmente, são inúmeros os artistas que produzem obras nesse formato, seja a partir de pesquisas mais profundas, que resultam em potencial comercial, seja como uma brincadeira, por exemplo, criando filtros para o Instagram”, afirma.

Artistas como Thiago Martins de Melo, Giselle Beiguelman e Igi Ayedun, entre muitos outros, são alguns dos nomes contemporâneos que vêm experimentando com formatos assim no cenário brasileiro.

Este conteúdo foi originalmente publicado em Obras de arte virtuais são vendidas por milhões de dólares – e moedas digitais no site CNN Brasil.

Fonte: CNN Brasil

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