(FOLHAPRESS) – No caldeirão de narrativas desta 53ª São Paulo Fashion Week, há um ponto que une a maioria das apresentações, que é o cansaço da nova geração de estilistas com as ideias de retrocesso, seja ele de cunho político, seja sobre as regras de estilo da própria moda.

O moralismo que permeia a divisão de gêneros no guarda-roupas e as pautas conservadoras do país que, invariavelmente, chegam às ruas, deram o tom dos desfiles na noite de quarta e início da tarde desta quinta-feira (2).

A começar pelo antimoralismo da grife Bold Strap, que levou às últimas consequências sua ideia quebrar a lógica de que homem veste cueca e mulher veste calcinha.

Essa é a máxima que parece mover o estilista Pedro Andrade, cujas roupas são quase uma resposta ao jargão “menino veste azul, e menina, rosa” -uma marca da pastora Damares Alves em sua gestão no ministério que defende os direitos humanos do atual governo. O viés político, está posto, é tema caro aos estilistas.

Os modelos de calcinha ampliada, usada pelos garotos, e a desconstrução da lingerie usada pelas garotas, vão de encontro ao discurso de defesa da moral e dos bons costumes propagado nesses últimos quatro anos. A partir do conceito queer, Andrade extirpa o ideal de gênero na composição dos looks.

Assim, o estilista agrada a uma ala de consumidores que, abraçada ao fetiche, se espalha pelas redes sociais e pistas de dança.

Mostrou botas de borracha, acessórios metálicos de “bondage”, meias arrastão, gargantilhas e toda a sorte de itens lidos como sexuais até pouco tempo atrás. Na coleção desfilada no Komplexo Tempo, espaço da zona leste convertido numa enorme boate, as roupas resumiam essa noite fetichizada e nada “conservadora nos costumes”.

A atriz Camila Queiroz, a Angel de “Verdades Secretas”, e a cantora Marina Sena, ambas trajadas com o visual sexy que mostra muito mais do que esconde, desfilaram para Andrade.

A passarela mostrou corpos gordos, magros, pretos, brancos, de meninas, de meninos e, para usar termo que corre nos bastidores, também de “menines”.

A neutralidade da palavra se estende por parte relevante das roupas apresentadas.

Um bom exemplo é a Modem, do estilista André Boffano. De tesoura mais afeita às artes visuais e a uma clientela que curte vestir novas proporções de saias, o estilista ampliou a oferta de roupas sem gênero.

Em meio aos tricôs, vestidos de caimento matemático e conjuntos bem cortados, havia várias jaquetas, camisas e calças que fundem a modelagem da moda masculina e feminina.

Tecidos são a alma da Meninos Rei, grife baiana do Projeto Sankofa, cujo propósito é abarcar marcas de estilistas racializados. As bases gráficas e tridimensionais vêm dos tecidos africanos usados pela grife como mantos reais para recobrir guerreiros modernos.

O patchwork colorido que é característica da marca dos irmãos Céu e Júnior Rocha apareceu cortado em conjuntos de calça, blusa e capa, o manto que recobriu parte considerável da apresentação, e opções urbanas de casacos combinados a sandálias do tipo gladiadora.

Em momento raro da história da SPFW, evento que sempre falou para as elites e classe média branca, um entregador de aplicativo cruzou a passarela.

Trajado com a moda hipersaturada da Meninos Rei, ele empunhava a bolsa e o chapéu que usa cotidianamente, o capacete e a enorme caixa térmica para guardar suas entregas.

Era um retrato fidedigno do uniforme real que, empurrado goela abaixo na conjuntura de crise econômica, forra os centros urbanos alheio ao jogo de tendências.

Para os fotógrafos, ele tirou de dentro do acessório a entrega daquele momento, um cartaz com o escrito “Chega! Fora Bolsonaro”. Ovacionado, saiu da sala deixando explícita a leitura, que não abre espaço para divagações, do que a marca e boa parte da SPFW está querendo dizer.