amanhecerSão Paulo está ficando mais fresquinho, o outono vai, pouco a pouco, dando as caras. E, para mim, é tempo de lavar todas as mantinhas de casa, separar uma para cada cadeira da mesa de jantar, dormir de meia, fazer chá, ligar o aquecedor no banho e, aproveitar o meio de caminho entre o calorão e o vento gelado para desligar o ar-condicionado do consultório, abrir as janela e atender assim, deixando o tempo da cidade entrar na sala. Com o tempo, entram o cheiro, o vento, uma folhinha ou outra, um mosquitinho, o barulho. Quando chego antes do primeiro atendimento e acabo de abrir a terceira e última janela, me volta à memória um trechinho de Samba e amor: “Escuto a correria da cidade. Que alarde!”. E me divirto com a lembrança.

As meninas eram ainda novinhas e eu cantava esta entre outras músicas para ajudá-las a chamar o sono. Minha censura de mãe adaptava o verso que dá nome à letra de Chico Buarque subtraindo o ‘e’, para fazer uma versão que me parecia mais adequada para a idade da plateia, como se alguém dissesse a seu amor que faz samba até mais tarde.

Sexta-feira passada, estava já na quarta sessão, quando os ruídos de fora passaram a perturbar a minha escuta e levantei para fechar a janela. Protegida da rua, a sala tornou a ser silêncio e eu me peguei pensando que o incômodo da poluição sonora, agora já serenado, tinha sido maior do que foi possível perceber enquanto o vivia. E de novo, me visitou a sensação da censura. Que notícia de incômodos censuramos a nós mesmos? Ou ainda, a que tipo de desagrado nos condenamos pelo simples fato de não conhecermos a vida sem ele?

Pois que entrem o tempo, os cheiros, o vento, as folhas e os bichos (sem diminutivo nenhum) que entre o barulho, que se faça samba e amor até mais tarde. Para que só então a gente escolha o que é ruído. Boa semana queridos.

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Fonte: Gazeta News