O ex-presidente Jair Bolsonaro atuou pessoalmente para tentar liberar o conjunto de joias e relógio de diamantes avaliado em 3 milhões de euros (cerca de R$ 16,5 milhões) trazidos ao Brasil de forma ilegal para ele. Ele também acionou três ministérios para forçar a liberação dos itens.

Como revelou o Estadão na sexta-feira, 03, o presente milionário dado pelo regime saudita acabou apreendido pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos. Eles estavam na mochila de um militar, assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que viajara ao Oriente Médio em outubro de 2021.

Entenda de que forma Bolsonaro usou a estrutura do governo, mobilizando os ministérios de Minas e Energia, Economia e Relações Exteriores, além de militares, para reaver as joias:

1) A entrada ilegal das joias – nada a declarar

No dia 26 de outubro de 2021, o então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, e seu assessor Marcos André Soeiro desembarcaram no Aeroporto de Guarulhos do voo 773, proveniente da Arábia Saudita. O assessor trazia na mochila o estojo com as joias (um colar, um par de brincos, um anel e um relógio) para o casal Bolsonaro, acompanhadas de um certificado de autenticidade da marca Chopard.

Ele fez a primeira tentativa de entrar com as joias ilegalmente no País. O militar optou pela saída “nada a declarar” para deixar a área do aeroporto sem registrar a posse dos bens estimados em R$ 16,5 milhões, infringindo a legislação. A manobra foi frustrada. Os servidores da Receita pediram para conferir a bagagem logo que ele passou pelo raio-X. Com a descoberta, os diamantes foram apreendidos.

2) A carteirada

O ministro e o servidor estavam representando o governo brasileiro na reunião de cúpula “Iniciativa Verde do Oriente Médio”, realizada na capital daquele país.

Com a apreensão das joias, o ministro volta para a área restrita do aeroporto, mesmo após ter passado pela alfândega, o que geralmente não é permitido, e faz a segunda tentativa de entrar com as joias no País. Ele alegou que era um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. O ex-ministro repetiu a mesma versão ao Estadão, acrescentando que o relógio era para o ex-presidente, em entrevista na sexta-feira, 03.

No ato de apreensão, foi dada ao almirante a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas o ministro não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e, seguindo os trâmites burocráticos, poderiam ser liberadas.

3) Acervo privado X público

No dia 29 de outubro de 2021, o chefe de gabinete adjunto de Documentação Histórica do gabinete pessoal do presidente da República, Marcelo da Silva Vieira, envia um ofício para o chefe de gabinete do ministro de Minas e Energia, José Roberto Bueno Júnior. No documento, ele afirma que o encaminhamento das joias seria feito e que a análise seria para a incorporação ao “acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.

A regra sobre o assunto sobre este assunto é clara. Segundo o Tribunal de Contas da União, em julgamento realizado em 2016, ex-presidentes só podem ficar com lembranças de caráter “personalíssimo” ou de uso pessoal, como roupas e perfumes.

4) A pressão sobre a Receita 1

O Ministério das Relações Exteriores é acionado pelo presidente Bolsonaro e pede, no dia 03 de novembro de 2021, à Receita, para que tome “providências necessárias para liberação dos bens retidos”. Neste momento, após reiteradas negativas da Receita, o governo começa a mudar a versão e dizer que as joias eram para o acervo, sem especificar qual.

“Considerando a condição específica do Ministro -representante do Senhor Presidente da República; a inviabilidade de recusa ou devolução imediata de presentes em razão das circunstâncias correntes; e os valores histórico, cultural e artístico dos bens ofertados; faz-se necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”, diz o ofício do Itamaraty ao qual o Estadão teve acesso.

Em resposta, a Receita volta a informar que só seria possível fazer a retirada mediante os procedimentos de praxe nestes casos, com quitação da multa e do imposto devidos.

5) A pressão sobre a Receita 2

No mesmo dia 03 de novembro de 2021, o gabinete do então ministro Bento Albuquerque reforça a pressão sobre a Receita em mais uma tentativa para conseguir colocar as mãos nas joias e entregá-las a Bolsonaro.

Em ofício, pede “liberação e decorrente destinação legal adequada de presentes retidos por esse Órgão”. Em combinação com o Itamaraty, o ex-ministro também passa a usar que a versão que a destinação seria para o acervo, novamente, sem dizer para o qual. A Receita mantém a apreensão.

6) A pressão sobre a Receita 3

No fim do mandato de Bolsonaro, o então secretário da Receita Federal, Julio Cesar Viera Gomes, entra em campo para liberar o material, no dia 28 de dezembro de 2022.

O secretário envia ofício para a área de alfândega do órgão em São Paulo em que pede a liberação.

Os servidores do órgão, que têm autonomia, responderam novamente que só liberariam as joias mediante pagamento do imposto.

7) O gabinete de Bolsonaro

Em 28 de dezembro de 2022, após seis tentativas frustradas, o próprio Bolsonaro entra em ação. O ex-presidente envia um ofício ao gabinete da Receita Federal para solicitar que as pedras preciosas fossem destinadas à Presidência da República, em atendimento ao ofício da “Ajudância de Ordens do Gabinete Pessoal do Presidente da República”.

Novamente, o pedido é negado.

8) O voo da FAB

A última tentativa de reaver as joias foi em 29 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro estava prestes a deixar a Presidência.

Bolsonaro, mais uma vez, se coloca na linha de frente da operação para pegar as joias e tenta atropelar a decisão da Receita

Por determinação de Bolsonaro, um funcionário do governo pega um jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB) e desembarca no aeroporto de Guarulhos, dizendo que estava ali para retirar as joias. “Não pode ter nada do (governo) antigo para o próximo, tem que tirar tudo e levar”, argumentou o militar, segundo relatos colhidos pelo jornal.

A justificativa do enviado de Bolsonaro contraria a versão do ex-presidente, que, após a revelação da reportagem, passou a dizer que as joias seriam para o acervo oficial.

O Estadão localizou a solicitação do chefe da Ajudância de Ordens do Presidente da República, à época o tenente-coronel Mauro Cid, para que a FAB levasse o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva até São Paulo. O documento dizia que a viagem de Silva era “para atender a demandas do Senhor Presidente da República naquela cidade”, com retorno “em voo comercial no trecho Guarulhos para Brasília”.

Em nenhum momento, durante a troca de comunicações e mensagens entre os órgãos públicos, Bolsonaro disse que as joias eram para o acervo da Presidência. O caso também nunca foi divulgado pelo governo anterior. Só veio a público com a reportagem do Estadão.

As regras

Se fossem considerados bens do viajante, seria necessário pagar os impostos. A única maneira possível de se retirar qualquer item apreendido pela Receita na alfândega – e isso vale para itens com valor superior a US$ 1 mil ou mesmo joias milionárias – é fazer o pagamento do imposto de importação, que equivale a 50% do valor estimado do item, além de uma multa de mais 25%, pela tentativa de entrar no País de forma ilegal.

Se as joias fossem classificadas como presentes do regime saudita ao governo brasileiro, elas passariam a compor o patrimônio da União e seria preciso a formalização oficial.

Conforme revelado pelo Estadão, depois de passarem mais de um ano em poder da alfândega, os itens milionários seriam oferecidos em leilão de itens apreendidos pela Receita por sonegação de impostos. Essa decisão, porém, acaba de ser suspensa, porque as joias passaram a ser enquadradas como prova de crime.

O Ministério da Justiça acionou a Polícia Federal para investigar os fatos revelados pelo Estadão que podem configurar crimes de descaminho, além de peculato e lavagem de dinheiro, entre outras ilegalidades.

As versões

Na sexta-feira, após o Estadão ter revelado o caso, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro disse que “não estava sabendo” que tinha “tudo isso”, referindo-se às joias de diamantes avaliadas em R$ 16,5 milhões. “Quer dizer que, ‘eu tenho tudo isso’ e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa impressa (sic) vexatória”, publicou Michelle nos stories do Instagram.

O ex-presidente Jair Bolsonaro disse à CNN que não tinha conhecimento dos presentes e dos valores, mas que as joias iam para o acervo da Presidência. Negou que tenha cometido alguma ilegalidade.

Depois de afirmar ao Estadão que as joias eram para o casal Bolsonaro, o ex-ministro alterou a versão. Ao jornal O Globo, disse que as peças seriam “devidamente incorporadas ao acervo oficial brasileiro”.