SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Integrantes da GCM (Guarda Civil Municipal) de Osasco, na Grande São Paulo, estão sendo investigados pela polícia sob a suspeita de práticas de maus-tratos contra agentes da própria corporação durante um curso inspirado no filme “Tropa de Elite”, que, entre outras semelhanças, tem até os gritos de “pede para sair” para forçar a desistência de alunos.

Não há registro de ter havido tapas no rosto dos participantes, como aqueles dados pelo capitão Nascimento na obra cinematográfica, mas, segundo integrantes da guarda ouvidos pela reportagem, os alunos foram submetidos a xingamentos, privação de comida, imersão em um lago gelado durante a madrugada, gás lacrimogêneo em sala fechada e eletrochoque com pistolas teaser.

“Vi vários colegas meus com marcas no corpo do choque que levaram. Todos [que participaram das aulas de distúrbios civis] levavam dois choques. Um choque coletivo e um individual. Segundo eles, para a gente sentir na pele o que a gente pratica no dia a dia”, disse à Folha de S.Paulo a guarda Bárbara Kelly da Silva, 38, uma das pessoas que procuraram a Polícia Civil para denunciar os maus-tratos.

Procurada pela Folha de S.Paulo, a Prefeitura de Osasco informou, por meio de nota, que a Corregedoria da Guarda acompanha o caso, mas que nenhum “evento adverso” foi registrado. “A GCM preza pela observância das normas vigentes, respeitando os direitos e garantias fundamentais, dando a todos os alunos um tratamento igualitário”, diz trecho (leia mais abaixo).

De acordo com os guardas ouvidos pela Folha, o curso é destinado a integrantes do Romu (Ronda Ostensiva Municipal), uma espécie de tropa de elite da GCM de Osasco, que parece uma imitação do batalhão da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), da PM paulista.

Com duração de sete dias e aulas diurnas e noturnas, o curso da GCM não era, em tese, obrigatório. Mas, segundo os guardas, aqueles que não se voluntariassem a participar dele eram desligados do Romu e, assim, realocados para outras atividades, conforme escolha dos chefes.

Batizado de “Patrulhamento Tático”, o curso foi criado neste ano e, até novembro, teve três turmas com 20 e 35 alunos, cada uma delas, segundo os guardas. Nas redes sociais, a GCM põe o lema do curso: “Vibra que Não Dói”.

Bárbara conta que no primeiro dia de aula, por exemplo, os alunos foram obrigados a correr por um parque da cidade, o Chico Mendes, e entrar debaixo de uma mangueira escorrendo água, para ficarem molhados.

Para imitar o treinamento do Bope retratado no cinema, os alunos eram obrigados a carregar um pesado fuzil feito de madeira, uma réplica, já que esse tipo de armamento não é utilizado pela guarda local.

Eventuais erros dos alunos, ainda segundo os guardas, eram punidos pelos instrutores com humilhações, como a obrigatoriedade de “pagar” flexões de braço diante de colegas e de outras pessoas que por ventura estivessem perto.

Em um vídeo compartilhado em redes sociais por uma moradora de Osasco, um guarda é obrigado a fazer flexões de braço debaixo da corrente de água. Pela imagem é possível ver o guarda segurando o fuzil de madeira.

A moradora teria sido uma das pessoas que acionaram a Corregedoria da GCM para denunciar as humilhações sofridas pelos guardas no parque.

Bárbara conta que o colega foi obrigado a passar por tal humilhação porque estava rindo da situação. “Ele inclusive bateu o sino porque não aguentou, coitado. Sentiu-se tão humilhado, chorou e desistiu. No primeiro dia”, disse.

Havia um sino de verdade que os desistentes do curso eram obrigados a tocar. Que tomava tal decisão também era desligado do Romu e realocado para outras atividades.

“Bati o sino porque não estava conseguindo fazer uma atividade do jeito que eles queriam. Aí, começou muita alopração e achei que não precisava passar por aquilo. Peguei e saí fora”, disse um guarda com mais de dez anos de corporação. Ele pediu anonimato com medo de represália dos chefes.

Pelas contas dos guardas, entre os 75 alunos que passaram pelo curso, 17 deles tocaram o sino para deixar o Romu.

Bárbara disse que decidiu denunciar os instrutores à polícia porque nunca se sentiu tão humilhada nos 15 anos de carreira na guarda, quatro deles no Romu.

Entre as humilhações, eles ficaram sendo molhados no primeiro dia desde o início da manhã até a madrugada e, ainda, privados de alimentação. Uma marmita era dividida entre duas ou três pessoas.

Ela diz ter chegado em casa às 4h, para, duas horas depois, estar no parque para o segundo dia de curso. Quem cochilava era obrigado a entrar debaixo da mangueira d’água, conforme conta a guarda.

Nesse segundo dia, ela foi obrigada a ficar na sala fechada com o gás lacrimogêneo e, no terceiro, mais aulas molhadas. Bárbara não chegou tocar o sino, mas foi desligada pelos superiores no quarto dia de curso, após ter tido uma crise de choro, pela estafa emocional dos dias sem dormir.

“Para mim, o pior de tudo foi ser xingada na frente de todo mundo. Nos xingavam de incompetentes, desgraçados, lixos”, disse Bárbara.

Para o advogado Thiago Lacerda, que representa Bárbara, o trabalho dele será acompanhar as investigações e, caso necessário, acionar o Ministério Público. “Para mim, é uma tortura psicológica. Ela chegou a passar mal. Os instrutores pressionaram tanto que ela teve uma crise. E não foi só ela. Então, isso não é normal.”

Para Clovis Bueno de Azevedo, professor de gestão Pública da FGV (Fundação Getulio Vargas), não faz sentido as guardas realizarem cursos desse tipo.

“Ainda que aceitemos que as guardas exerçam funções policiais na prática, porque a legislação infraconstitucional assim autoriza, isso não leva a que se faça um treinamento estúpido e desrespeitador da integridade emocional e física das pessoas”, afirmou o professor.

Para ele, o foco do curso deveria ser a valorização das pessoas civilizadas, que sabem dialogar e usar a força na medida do indispensável. “Uma pessoa humilhada, desrespeitada, agredida. Ela vai se comportar como? Vai fazer a mesma coisa com o cidadão”, diz ele.

Procurada pela Folha, a Secretaria da Segurança Pública informou que a Polícia Civil instaurou um inquérito policial para investigar os “crimes de maus-tratos aos quais as vítimas teriam sido submetidas”. “A declarante já foi ouvida e as equipes trabalham para identificar outros elementos e testemunhas que contribuam para a elucidação dos fatos.”

OUTRO LADO

Procurada, a Prefeitura de Osasco respondeu por meio de uma nota que o caso é acompanhado pela Corregedoria da corporação.

Informou, porém, que o ingresso no curso é voluntário e que busca levar o “agente para algo próximo a realidade que vivenciará em sua carreira, o que demanda, além do preparo psicológico, vigor físico, dentre outros aspectos”.

A guarda não explica, porém, quais atividades seriam essas. Também não informou quantas pessoas desistiram dele após o ingresso.

“Destacamos que não registramos durante as instruções eventos adversos. Ressaltamos que as pessoas possuem realidades fisiológicas diversas e algumas acabam sentindo mais durante os treinamentos.”