carteiro e cao O carteiroSe o cão for realmente o melhor amigo do homem, os carteiros ficaram de fora da lista dos profissionais a desfrutar do afeto canino.

São tão épicos os embates entre eles, que já renderam desastradas escaladas em muros e árvores, pernas de calças rasgadas, visitas ao Pronto-Socorro e, não raro, correspondências espalhadas pela rua.

Os cães odeiam os carteiros.

Eu, não.

Eu os admiro. Gosto muito deles.

Muito antes da popularização dos telefones inteligentes e do surgimento da internet, eram eles os mensageiros dos nossos afetos e aflições, profissionais que gozavam da estima geral.

Naquele tempo em que as pessoas se orgulhavam das caligrafias e treinavam os manuscritos em cadernos apropriados, as missivas eram testamentos do que ia pela cabeça, alma e coração de quem as remetia.

Era tão bom receber uma carta com seus selos comemorativos homenageando heróis da história, esportistas e criaturas da fauna e da flora, caprichosamente desenhados por artistas de grande talento.

Era ainda mais especial quando aquela carta vinha do estrangeiro, com envelope de moldura quadriculada em azul e vermelho, tatuada com as palavras ‘par avion’ ou  air mail’, indicando que chegara a bordo de  uma aeronave proveniente de uma terra distante.

Não cheguei a ser um filatelista, no sentido bíblico, mas tinha o costume de guardar os selos das cartas que recebia.

Escrevi e recebi muitas. Centenas. Talvez milhares delas.

Era muito comum as pessoas trocarem cartas, num ‘virtualismo’ que tinha muito de intimidade e confiança.

Como não evocar as célebres correspondências de Clarice Lispector e Manuel Bandeira, ou de Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, registradas posteriormente em livros deliciosos de ler?

Onde cresci, o carteiro subia ou descia a rua com o seu alforje cheio de envelopes. Muito raramente, entregava algum pacote maior, algum presente.

Na ausência das campainhas de hoje, eles batiam palmas ao portão, muitas vezes gritando o nome do destinatário, anunciando a chegada de notícias.

A entrega de uma carta vinha sempre carregada de suspense e emoção.

Ela poderia trazer notícias boas ou ruins.

Um sobrinho que nasceu na Bahia, por exemplo. Ou o convite para um casamento ou batizado em Porto Alegre; a formatura do filho de um amigo na distante América do Norte também poderia ocorrer.

Ou a dor da morte ou doença de alguém.

As cartas de pai e mãe traziam o calor de um afago e sábios conselhos.

A de um amigo trazia a camaradagem, a partilha.

Mas as cartas de amor…

Ah, as cartas de amor…

Não tenho dúvida de que elas foram inventadas pelo cupido em dia de divina inspiração.

Elas traziam sentimento e encanto, fotografias, promessa de amanhãs risonhos e recatado tesão. Não raro, carregavam o cheiro da colônia dele ou a marca do batom dela.

Muita gente se conheceu por carta e casou respaldado pelo que leu.

É como se ficasse atraído pelo interior da outra pessoa e não pelo que os olhos, nas condições presentes, veem.

Era como se tivessem tomado conhecimento um do outro ‘do umbigo para fora’, e não da ‘figura’ escancarada nas imagens dos vídeos dos computadores de hoje.

Os tempos agora são outros, sabemos, e o resultado visual do que pregam nas academias de ginástica se tornou mais importante do que a substância de um ensinamento de Nietzsche, ou um arrepio soprado ao ouvido por Drummond.

Assim sendo, é natural que os carteiros tenham perdido tanto do seu encanto.

A rapidez e praticidade de um e-mail – ou uma mensagem de voz num destes aplicativos de celular – transformou as correspondências pessoais em objetos de museu.

Em seus embornais, nossos homens de amarelo carregam mais peso, pacotes de encomendas compradas pela internet, contas de telefone e cartões de crédito, ou de água e luz.

Se a cor de seus uniformes permanece intacta após todos estes anos, a magia do ofício desbotou e apenas os cães ainda não se aperceberam disto.

Fonte: Brazilian Voice