SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O padre Julio Lancellotti afirma que tem sofrido “um massacre” desde que a sua participação como narrador no curta-metragem “São Marino” foi tornada pública. Embora a produção trate santa Marina como uma figura LGBTQIA+, o pároco destaca que essa leitura não é compartilhada por ele.

“Nunca falei que a santa era LGBT”, diz à reportagem. “A minha narração é a narração oficial da história da santa Marina”, continua.

A participação de Lancellotti na obra chamou a atenção da Arquidiocese de São Paulo, que na semana passada emitiu uma nota criticando o projeto.

Segundo a circunscrição eclesiástica, santa Marina era uma jovem órfã de mãe que, para continuar a viver com o pai, decidiu ingressar em um mosteiro disfarçada de monge. O segredo em torno de seu gênero, afirma a arquidiocese, só foi descoberto após a sua morte.

Como mostrou a coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, o curta “São Marino” abordará discussões contemporâneas ao revisitar a história de Marino sob a ótica de uma pessoa transgênero.

“O documentário que vai fazer as suas interpretações, que não são minhas. O que eu relato é a vida oficial dela. De que ela, sendo uma mulher, assumiu a identidade masculina para ser monge, entrou como Marino no mosteiro e só depois de morta foi reconhecida [mulher]”, afirma Julio Lancellotti.

“Eu não falei nada diferente disso [da história relatada pela Igreja Católica]. O que fica sendo veiculado é que ‘padre narra história de santa trans’. No tempo dela não existia essa nomenclatura e é difícil aplicá-la hoje. Existe um fato concreto, que é relido por determinados grupos”, segue.

De acordo com a Igreja, santa Marina foi falsamente acusada de ter engravidado uma jovem. “Podendo defender-se, revelando que, na verdade, era uma mulher, ela silenciou, suportando a provação da calúnia e humilhações, unindo-as aos sofrimentos de Cristo”, diz a Arquidiocese de São Paulo em nota.

Ao se ver sob constantes ataques causados pela repercussão do curta-metragem, padre Julio Lancellotti compara sua situação à da santa.

“Quanto mais católicos se dizem, quanto mais religiosos se dizem, mais cruéis são nas críticas. São críticas e ameaças violentas. Fazem afirmações para desqualificar, destruir o ser humano. Eu tenho sentido nesses dias o que sentiu santa Marina: ser acusado sem poder se defender”, afirma o padre.

Constante alvo de críticas por suas posições progressistas e por suas ações em defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade social, Julio Lancellotti diz que, desta vez, os ataques se intensificaram “com uma crueldade virulenta e desumana”.

“Eu imagino que quando santa Marina foi acusada de ser o pai da criança, ela sentiu essa mesma violência, a ponto de ter sido expulsa do mosteiro. Ela morreu ao relento de maus tratos e de serviços cruéis, ela não sobreviveu. E nunca se defendeu”, diz ele.

“A única coisa que procuro é que se diga a verdade”, finaliza o padre.

A diretora do curta, Leide Jacob, endossa a versão do pároco. “O padre Julio apenas narrou a história que a própria Igreja divulga. A ressignificação da santa em santo é feita pelo filme, não pela narração. O padre Julio narrou, ouviu, acolheu os personagens, como todo padre deveria fazer”, diz à coluna.

“O tema é muito polemico porque a Igreja, e a maioria de nossa sociedade, não reconhece o corpo trans, a identidade trans. Para a igreja e para a sociedade, o que vale é o aspecto biológico. Há muito preconceito”, afirma ainda a cineasta. “Trazer o Marino para a atualidade, neste paralelo de vivências, é responsabilidade do filme.”

“São Marino” reúne em seu elenco Ariel Nobre, Daniel Veiga, Gabriel Lodi, Leo Moreira Sá, Omo Afefe e Rosa Caldeira -todos trans- e foi gravada na Igreja Santa Marina, na zona leste de São Paulo.

O curta foi viabilizado por meio do ProAC (Programa de Ação Cultural), do Governo de São Paulo. Sua produção é assinada por Paula Pripas e pela Filmes de Abril. O roteiro é de Cesar Sandoval Moreira Jr., Fabiana Kelly e Leide Jacob. Bea Pomar fez a montagem do filme e do trailer.