“Mamãe, eu consegui”. Foi dessa maneira que Nadia Nadim comemorou a formação em medicina pela Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Jogando nos Estados Unidos desde o ano passado, o curso foi concluído de maneira remota. Mas, apesar da distância, o país nórdico ainda é a casa da atacante nascida no Afeganistão, que aos 11 anos precisou fugir do Taleban com a família e trilhar o caminho nos gramados longe da terra natal.

Natural de Herat, Nadim teve uma infância confortável junto de Giti, Diana, Muskan e Mujda, suas quatro irmãs. Filhas de Rabena Khan, um general do Exército Nacional do Afeganistão, as meninas viveram boa parte da infância em Cabul, capital afegã, e acompanharam de perto, na década de 1990, o surgimento do Taleban, grupo fundamentalista que busca instaurar uma versão radical da lei islâmica. Um ano antes dos EUA invadir o país e dar fim ao regime, em 2001, a mãe das crianças, Hamida, teve a certeza de que precisava fugir o mais rápido possível com a família. Certa noite, o marido não havia voltado para a casa após uma reunião com um ministro. Pouco simpático aos opressores, fora sumariamente executado.

O exílio na Dinamarca não aconteceu de forma instantânea – muito menos planejada. O primeiro refúgio da família foi a cidade de Karachi, no Paquistão, onde viveram de forma discreta, sem levantar suspeitas, até conseguirem rumar à Europa. Era comum Nadim ver a mãe conversando com um homem “gordo” e “com bigode” que ia na sua nova casa levar notícias. Foi com a ajuda dele que elas conseguiram seis passaportes falsos e voaram para Milão. Na Itália, o plano era fazer uma perigosa travessia ilegal que supostamente as levariam para a Inglaterra, onde tinham parentes. Após dias na escuridão, com apenas uma garrafa d’água, algumas torradas e tendo como companhia apenas o motor do caminhão velho, são forçadas a descer do veículo imediatamente.

“Tinha imaginado Londres de forma diferente, mas beleza”, conta Nadim em seu relato no site Players Tribune. “Depois de algumas horas, minha mãe encontra um senhor que está levando o cachorro pra passear e pergunta: ‘Ei, onde estamos?’. Ele diz: ‘Em Randers’. Acontece que não estamos em Londres. Estamos em uma pequena cidade na Dinamarca.”

DA FUGA AO SUCESSO – Com a ajuda da polícia, a família de Nadim encontrou abrigo em um acampamento. Ficaram lá durante dois meses até se mudarem para um outro, com um perfil mais familiar, e decidiram pedir asilo. A resposta positiva veio em 2008, iniciando um novo capítulo na vida das afegãs, desta vez na Dinamarca. A lembrança do pai, fanático por esportes, refletiu na paixão de Nadim pela bola. A carreira nos gramados teve início em 2005, atuando pelos modestos B52 Aalborg e Team Viborg, antes de se transferir para o IK Skovbakken na temporada seguinte. Seis anos depois, em 2012, acertou com o Fortuna Hjørring e teve a oportunidade de jogar sua primeira Liga dos Campeões.

O notável talento de Nadim chamou a atenção da Associação Dinamarquesa de Futebol (DBU, sigla em dinamarquês), e a atacante se tornou a primeira atleta naturalizada a disputar uma partida oficial pela seleção da Dinamarca. Convocada para as edições de 2009 e 2013 da Eurocopa, foi no torneio de 2017 em que a atleta demonstrou todo o seu brilho. A jogadora foi peça fundamental na campanha do vice-campeonato, marcando inclusive um gol na final da competição, vencida pela Holanda por 4 a 2.

Com o nome em evidência no futebol feminino, Nadim assinou com o Manchester City em janeiro de 2018, marcando seu primeiro gol pelo time inglês com apenas seis minutos em campo, sendo vice-campeã da FA WSL na mesma temporada. Mas como “casa” sempre foi algo importante na vida da atleta, a atacante pediu para ser transferida na temporada seguinte justamente por “não se sentir em casa” no clube. Nada que abalasse seu sucesso, e o Paris Saint-Germain surgiu como o destino perfeito. Na equipe parisiense, carregou a braçadeira de capitã por dois anos e meio, conquistando o título do Campeonato Francês 2020-2021.

MAIS DO QUE FUTEBOL – Durante sua carreira nos gramados, Nadia Nadim usou seu espaço em prol de causas importantes, como a luta pela igualdade de gênero. Em 2019, a Unesco nomeou a atacante como embaixadora pela Defesa da Educação de Meninas e Mulheres, entrando para o time de atletas ilustres parceiros da entidade, como Pelé. No Afeganistão, as liberdades das mulheres são limitadas, incluindo a oportunidade de jogar futebol.

“Talvez tenha começado a jogar futebol para me sentir mais perto do meu pai outra vez”, disse em entrevista ao canal francês LCI. “O que é bonito é que o futebol veio até mim. Eu descobri o jogo, comecei a treinar nas ruas, em todos os lugares. Pouco a pouco, depois de meses, ganhei confiança para perguntar se podia jogar com minhas irmãs. Fui sortuda por me terem aceitado.”

Quando o Taleban retomou o controle do Afeganistão no ano passado, o número de pessoas que buscaram desesperadamente abandonar o país cresceu vertiginosamente, com aeroportos lotados e pessoas se agarrando em aviões, assombrados pelo medo. Em entrevista à CNN, Nadim fez questão de usar sua voz para jogar luz sobre a crise imigratória na região.

“Tenho apenas 33 anos, mas sinto que vivi sete, oito vidas. Sinto que isso me moldou, me deu esse caráter, essa força que tenho hoje. Mas eu não quero que ninguém passe pelas mesmas coisas que eu passei, honestamente. Nem mesmo meus inimigos.”

Nadim atualmente defende o Racing Louisville FC, dos EUA. Conforme a jogadora de 34 anos vê a carreira se aproximando do fim, novos objetivos vão surgindo, mas sempre tendo como base a compaixão e empatia pelo próximo. A escolha pela Medicina não foi à toa. Recentemente, a atleta revelou ao jornal L’Équipe ter uma admiração pela ONG Médicos Sem Fronteiras, onde gostaria de trabalhar um dia, conciliando com seu trabalho no futebol.

“Talvez possa colaborar com a Fifa, Uefa ou outra federação, se me quiserem. Eu quero fazer o futebol maior do que é e levá-lo para onde ainda não é realidade.”