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Image caption Bandeiras da Irlanda e do Reino Unido; líderes britânico e irlandês agiram de forma diferente para conter o coronavírus nos territórios

Vizinhos com história, cultura e língua conectadas, o Reino Unido e a Irlanda agora se veem em momentos bastante distintos na crise do coronavírus.

O Reino Unido, formado pela Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte (que fica na mesma ilha que a Irlanda), já ultrapassa 10 mil mortos (12.107 nesta terça, 14) e tem 94.829 pessoas infectadas com coronavírus. Já a Irlanda tem 365 mortes e 10.647 infectados. Os dados são da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos.

Per capita, ajustando às populações distintas dos dois países, temos 18,17 mortes por 100 mil pessoas no Reino Unido, ante 7,45 mortes por 100 mil pessoas na Irlanda.

Mas Reino Unido e Irlanda começaram com praticamente o mesmo número de leitos de UTI por 100 mil habitantes (cerca de 6). Então, o que explica essa diferença?

Características da população

Apesar de próximos, o Reino Unido e a República da Irlanda têm características demográficas bastante distintas. Além disso, seus líderes adotaram diferentes abordagens de enfrentamento ao coronavírus.

Por isso, é difícil apontar com segurança as razões da disparidade entre os números: foram as características distintas ou as políticas governamentais que causaram essa diferença agora? Ou algum fator diferente entre os países, mas importante para a dispersão do vírus, ainda desconhecido para especialistas?

Vamos estabelecer, então, as diferenças conhecidas.

A primeira é a idade da população. Na Irlanda, a porcentagem de pessoas com mais de 65 anos é de 14%, ante 18% no Reino Unido. Sabe-se que pacientes idosos com covid-19, a doença causada pelo coronavírus, têm maior taxa de mortalidade.

Além disso, diz à BBC News Brasil o médico especialista em doenças infecciosas Samuel McConkey, professor da Royal College of Surgeons na Irlanda, a população de seu país não está tão concentrada em uma só cidade, como é o caso do Reino Unido, com Londres.

Também não é tão urbana quanto a população britânica (63% da população irlandesa é urbana; já no Reino Unido, 83% da população vive em cidades).

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Image caption Primeiro-ministro Boris Johnson, que depois foi infectado com coronavírus, começou com estratégia de “mitigação” do coronavírus, e não supressão

A capital, Londres, é populosa, com 8,9 milhões de habitantes, quase o dobro da população de toda a Irlanda. Já Dublin, capital irlandesa, tem 1,3 milhão de pessoas.

“E não temos tantos prédios quanto Londres, a população é mais espalhada pela cidade, de forma mais horizontal e menos vertical”, diz McConkey.

Uma observação importante: dentro do Reino Unido, os números da Inglaterra têm um peso mais importante que os da Escócia, Gales e Irlanda do Norte, já que a população do país representa 84% do total, então o número total de mortos e infectados do Reino Unido está sendo “puxado” pela Inglaterra e sua capital.

Além disso, passam 75 milhões de passageiros internacionais por ano no aeroporto de Heathrow, o principal do Reino Unido, ante 31 milhões em Dublin.

‘Timing’ dos governos

Mas um motivo importante para a diferença do que se vê entre a Irlanda, que pertence à União Europeia, e o Reino Unido, que neste ano saiu dela, parece ser o “timing” da ação para conter o coronavírus.

“Nós reagimos mais cedo que o Reino Unido. Essa reação contribuiu para resultados melhores”, avalia o McConkey. “O atraso do Reino Unido aumentou o número de casos e pode ter causado dificuldades para o sistema público de saúde. Na verdade, não fizemos nada de muito diferente. Só fizemos mais cedo.”

Ou seja, aquele número de leitos de UTI começou semelhante entre a Irlanda e o Reino Unido, mas hoje já não é o mesmo, já que o Reino Unido teve muito mais estresse sobre o sistema (embora também tenha ampliado o número de leitos).

No dia 9 de março, o primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar, cancelou a celebração do St. Patrick’s Day, a maior festa do país. No dia 12 de março, fez um pronunciamento em que disse que escolas, universidades e creches na Irlanda seriam fechadas durante duas semanas (fechamento que depois foi prorrogado), incentivando o trabalho à distância e poucos eventos sociais.

Mandou fechar os pubs (bares típicos do Reino Unido e da Irlanda) e as escolas. Ainda em fevereiro, cancelou um jogo de rúgbi entre a Irlanda e a Itália, um decisão que não foi muito popular na época.

Na sexta-feira (10/04), Varadkar anunciou que as restrições durariam até dia 5 de maio. O primeiro-ministro, que não era popular, está ganhando força pela maneira como vem lidando com a epidemia.

Enquanto isso, o Reino Unido havia adotado a abordagem da “imunidade de rebanho”, sem fechar escolas, restaurantes, pubs e sem cancelar grandes eventos. A ideia da imunidade de rebanho era deixar a população se contagiar pelo vírus aos poucos e ter uma população suficientemente imune para que o vírus circule sem perigo.

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Image caption Leo Varadkar tem ganhado apoiadores na Irlanda pela maneira sincera como comunica à população sobre a ameaça do coronavírus

Esperava-se que o primeiro-ministro, Boris Johnson, anunciasse decisões semelhantes na mesma noite, mas seu pronunciamento surpreendeu, mantendo o Reino Unido na fase de mitigação do vírus, sem estabelecer uma quarentena mais dura. Justificou a decisão de não fechar escolas dizendo que isso seria “mais danoso do que benéfico”.

O governo também foi criticado por permitir que o festival de Cheltenham, um encontro anual de corrida de cavalos que reúne milhares de pessoas, ainda ocorresse em meados de março.

O Reino Unido pediu que a população evitasse socializar ou participar de grandes eventos no dia 16 de março, e estabeleceu quarentena total no dia 23 de março, quase duas semanas depois das primeiras medidas na Irlanda.

“Certamente fizemos mudanças sociais mais cedo, o que pode ter feito diferença. Enquanto o Reino Unido estava promovendo grandes eventos, como o festival de Cheltenham e jogos de futebol, nós estávamos cancelando todos os eventos com grandes públicos”, diz o professor de clínica geral da Universidade de Limerick, na Irlanda, Liam Glynn.

“Enquanto Boris Johnson estava dizendo para as pessoas lavarem as mãos, [o primeiro-ministro irlandês] Leo estava sendo honesto sobre a seriedade do problema e dizendo que teríamos que fazer mudanças sérias nas nossas vidas.”

McConkey também critica a adoção inicial da estratégia de “imunidade de rebanho”.

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Image caption Centro de testes em Dublin; Irlanda adotou uma estratégia agressiva de testes na população

“Não existem evidências científicas que provem que a imunidade de rebanho existe para este coronavírus. É estranho basear uma estratégia nacional em algo que pode ser apenas parcial e temporário”, avalia McConkey. “É preciso diminuir o ritmo de infecções para não sobrecarregar o sistema de saúde.”

Testes

A Irlanda também está à frente do Reino Unido nos testes de coronavírus, o que pode ter contribuído para sua “vantagem” em relação às mortes.

Há ao menos 25 centros para testes do vírus no país. Com mais testes, pessoas que estiveram em contato com pacientes infectados também são isoladas – estratégia que a OMS (Organização Mundial da Saúde) vem recomendando.

“E isso porque nossa própria quantidade de testes está sendo criticada por ser pequena demais”, diz o McConkey. O objetivo do governo é chegar a 100 mil testes por semana até o final de abril.

Isso não está acontecendo no Reino Unido, embora o ministro da Saúde tenha anunciado um objetivo de 100 mil testes de coronavírus por dia até o final de abril.

Irlanda do Norte

Quando Boris Johnson e Leo Varadkar tomaram decisões bastante diferentes, ainda sem “lockdown” no Reino Unido e já com escolas e estabelecimentos fechando na Irlanda, a Irlanda do Norte se viu no meio de dois extremos.

A nação faz parte do Reino Unido, mas fica na mesma ilha que a República da Irlanda. Historicamente, a Irlanda do Norte tem uma divisão político-religiosa, com um grupo a favor da união entre as duas irlandas e outro favorável à permanência no Reino Unido.

Os números entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda não estão tão diferentes, embora a República da Irlanda tenha resultados um pouco melhores.

Isso pode indicar, segundo o virologista Connor Bamford, da Queen’s University em Belfast, capital da Irlanda do Norte, que a diferença entre os resultados da Irlanda e do Reino Unido pode ter mais a ver com as diferentes características populacionais, e não tanto com a estratégia dos governos.

Tomando como exemplos as ações na Nova Zelândia, que visam à eliminação total do vírus nas ilhas que compõem o país, alguns defendem uma medida conjunta em toda a ilha da Irlanda e Irlanda do Norte.

“Isso pode ser difícil por causa dos problemas do passado, mas não faz sentido ter duas abordagens de saúde em uma mesma ilha. Vemos os resultados quando há estratégias robustas e coesas em ilhas, como na Nova Zelândia e Cingapura”, diz Glynn.

Para ele, as semelhanças entre os números da Irlanda do Norte e da República da Irlanda se dá não necessariamente por semelhanças demográficas, mas porque “muitos do Norte estavam se alinhando à República por conta própria, fechando escolas e adotando medidas de distanciamento social mesmo antes do governo do Reino Unido exigir isso”.

“É muito importante permanecermos consistentes na ilha toda na forma como vamos lidar com isso, principalmente ao sair da quarentena mais restrita. Tem que ser uma abordagem para a ilha toda”, afirma Glynn.

“Historicamente, ilhas têm vantagens para lidar com epidemias. Com a água servindo de fronteira, evitar a importação de novos casos por meio do controle de movimento para fora e dentro da ilha é simples, em comparação [com outros países]”, escreveu o professor de saúde pública da Universidade de Bristol, no Reino Unido, Gabriel Scally. no jornal The Irish News, da Irlanda do Norte.

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Image caption Polícia irlandesa faz checagem nas estradas; especialistas defendem uma ação conjunta da República da Irlanda com a Irlanda do Norte, para proteger toda a ilha

“No entanto, nessa pandemia de coronavírus, a vantagem geográfica da Irlanda está sendo esmagada pela adoção de duas abordagens muito diferentes para lidar com a doença.”

Ele critica a quantidade de testes sendo feitas no norte em relação ao sul. “Sem mecanismos efetivos de detectar e lidar com novos casos que eventualmente surgirão no norte e no sul, e restrições comuns para viagens para dentro e fora da ilha, poderemos voltar a mais um gigante surto. Duas abordagens diferentes não são compatíveis com a necessidade de controle que precisamos para vencer essa batalha.”

No texto, Scally defendeu que os líderes políticos da Irlanda do Norte se desvencilhem da abordagem de Londres. “Eles e os líderes do sul devem, como iguais e com urgência, harmonizar suas estratégias e ações.”

‘Aprender com os erros’

Na visão de Glynn, o que importa é que tanto a Irlanda quanto o Reino Unido agora estão adotando a estratégia de “supressão” do vírus, tentando reverter o crescimento da epidemia, reduzindo o número de casos e mantendo esses números baixos.

Para Bamford, o Reino Unido foi “devagar” para estabelecer a quarentena, mas “isso não importa agora”. “O que importa é que podemos aprender com os erros do passado, porque haverá várias ondas do coronavírus”, diz ele. E os fatores “sutis” podem ser importantes para aprender como reduzir a quarentena de uma maneira inteligente.

“Estamos tentando ganhar tempo antes de conseguirmos uma vacina. Por enquanto, só sabemos que o isolamento funciona. Precisaremos continuar com o isolamento e com o distanciamento social. As pessoas devem se acostumar à vida assim, mas vai melhorar porque estaremos mais preparados.”

“A verdade é que só saberemos responder à pergunta de quem agiu da melhor forma em dois ou três anos”, diz McConkey. Mas, diz ele, não é hora para contar pontos. “Estamos todos juntos nessa. Só com países trabalhando juntos, sem apelar para nacionalismo, conseguiremos lidar com isso. Precisamos de cooperação internacional e união.”

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Fonte: BBC