• Beatriz Rey
  • De Washington (EUA) para a BBC News Brasil

Mulheres em manifestação contra o presidente americano Donald Trump

A candidatura de Kamala Harris à vice-presidência pelo partido Democrata colocou as mulheres negras no centro das eleições presidenciais dos EUA deste ano.

Harris é a primeira negra (e descendente de imigrantes) a integrar uma chapa à Presidência de um dos dois maiores partidos do país.

Mas o papel dessas mulheres pode ir além da representatividade trazida pela senadora do Estado da California.

Como aconteceu em 2016, as mulheres negras devem votar em massa contra o presidente e candidato do partido Republicano, Donald Trump, diz a historiadora Martha Jones, professora da Universidade Johns Hopkins.

Além disso, a divisão histórica no comportamento eleitoral entre americanas brancas e negras pode ser substituído por uma união feminina contra Trump.

Jones acaba de publicar o livro Vanguard — How Black Women Broke Barriers, Won the Vote and Insisted on Equality for All (Em tradução livre: Vanguarda — Como as mulheres negras quebraram barreiras, conquistaram o voto e insistiram na igualdade para todos), que retrata a luta histórica das mulheres negras por poder político nos Estados Unidos.

Em entrevista à BBC News Brasil, Jones afirma que poderemos observar um alinhamento do voto feminino contra Donald Trump (o voto das mulheres é historicamente dividido).

“As mulheres negras se organizam e votam em bloco. As mulheres brancas estão divididas entre partidos e ideologias. Não há dúvida de que as mulheres negras e brancas enxergam política de maneira diferente, usam o voto de jeitos diferentes”, explica.

Entretanto, uma pesquisa de opinião pública recente realizada pelo jornal Washington Post/ABC News mostra que o candidato democrata Joe Biden lidera entre as mulheres por 23 pontos percentuais.

Essa vantagem de Biden se mantém nos recortes raciais feitos por outras pesquisas.

Em Michigan, um dos Estados com grande quantidade de eleitores indecisos, 52% das mulheres brancas de classe média preferem o democrata a Trump, segundo o levantamento da NBC News/Marista.

De acordo o Pew Research Center, a vantagem de Biden sobre Trump é de 85 pontos percentuais entre as mulheres negras.

Diante dos resultados das pesquisas, o presidente tem feito fortes apelos às mulheres em seus eventos de campanha para tentar reverter esse cenário.

Jones passou as duas últimas décadas estudando a influência da população negra na história da democracia americana.

Seu primeiro livro, Birthright Citizens (Cidadãos por direito de nascença, em tradução livre), foi lançado há dois anos e recebeu diversos prêmios pelo retrato minucioso das batalhas legais travadas por ex-escravizados para terem sua cidadania reconhecida no século 19.

Mulheres negras devem votar em massa contra o presidente e candidato do partido Republicano, Donald Trump, diz a historiadora Martha Jones, professora da Universidade Johns Hopkins

A historiadora começou sua carreira em 1987, quando se formou em Direito na CUNY School of Law. Depois, obteve o doutorado em História pela Universidade de Columbia.

Morou em Nova York, onde nasceu (passou a infância no Harlem), até 2017. Naquele ano, mudou-se para Baltimore, em Maryland, para lecionar história na Johns Hopkins.

Jones tem familiares espalhados por diversos cantos do mundo, inclusive no Brasil.

A ideia para o novo livro surgiu quando ela começou a coletar histórias sobre as mulheres negras de sua própria família.

Pelo que descobriu, sua história começa em 1808, quando Nancy Belle Greves, a primeira mulher que identificou em sua árvore genealógica, nasceu escravizada.

Jones ficou curiosa sobre como as descentes de Nancy se sentiram em 1920, quando as mulheres ganharam direito ao voto no país. Elas poderiam votar? Se pudessem, o que fariam com os seus votos?

A história da família de Jones ecoa as dezenas de outras contadas por ela no livro. Juntas, essas narrativas revelam que as mulheres negras foram excluídas da briga pelo direito ao voto que se arrastou entre os séculos 19 e 20 nos Estados Unidos.

Em outras palavras, a lei do sufrágio feminino de 1920 (que completou cem anos em agosto deste ano) deu direitos políticos apenas a uma parte das mulheres: as brancas.

Kamala Harris pode se tornar a primeira mulher negra a ser vice-presidente dos EUA

Além de ajudar a entender o comportamento eleitoral das mulheres na eleição presidencial deste ano, o trabalho da historiadora também é relevante diante dos protestos recentes contra a violência policial contra negros no país.

O mesmo racismo que marginalizou o movimento feminino negro na década de 1920 ainda assola a sociedade americana.

Não por acaso, mulheres negras estão entre os principais organizadores do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em tradução livre).

A partir das narrativas de seu livro, Jones extrai lições do ativismo das mulheres negras que podem ajudar o país a superar os sinais recentes de retrocesso democrático, como as ameaças de Trump de não aceitar o resultado das eleições.

A marginalização histórica das mulheres negras

A história da aprovação da lei que deu direito ao voto às mulheres (chamada de emenda constitucional 19) é marcada por racismo, e não só das mulheres brancas.

Para aprová-la, o movimento feminino branco se alinhou com parlamentares racistas do Sul do país.

“A percepção era de que você não podia trazer mulheres brancas para um movimento de que mulheres negras são membros importantes. Isso era visto como desqualificador. Isso não significa que as mulheres negras desparecem completamente, mas elas ficam do outro lado da porta”, diz Jones.

Em seu livro, o capítulo dedicado à emenda constitucional 19 é chamado apenas de “emenda”.

“Foi um esforço para diminuir o tipo de tom celebratório do qual a emenda constitucional 19 desfruta na história do movimento sufragista feminino. Quis marcar essa emenda como um marco, mas sem dar mais importância a ela do que ela merece”, conta.

A historiadora considera uma possível união entre os movimentos femininos da época como uma “oportunidade perdida”.

Para ela, a exclusão das mulheres negras não foi problematizada porque havia interesse do movimento sufragista em aprovar a emenda 19 imediatamente.

“Qual foi o preço pago por uma emancipação que abandonou tantas mulheres? Esse abandono retardou o direito ao voto feminino? São questões para as quais não há resposta, mas que devem ser contempladas, principalmente quando as pessoas passam pano para o racismo em torno da emenda em nome da ‘urgência’ de aprová-la”, acrescenta.

Lembrando que as mulheres ganharam o direito ao voto no Brasil doze anos depois (em 1932), ela diz: “Não acho que as mulheres brasileiras têm menos poder político do que as americanas porque obtiveram direito ao voto mais tarde. A ideia de que as mulheres americanas tinham que votar em 1920, que existia valor nessa urgência, faz parte do compromisso que levou à aprovação da emenda constitucional 19”.

Em Michigan, um dos Estados com grande quantidade de eleitores indecisos, 52% das mulheres brancas de classe média preferem o democrata a Trump

Como resultado, o voto feminino negro só foi reconhecido e garantido por lei em 1965, quando o presidente Lyndon Johnson sancionou a lei de direito ao voto.

Ao mesmo tempo que eram marginalizadas pelo movimento feminino branco, as mulheres negras também padeciam com o sexismo dos homens negros.

Por exemplo, no século 19 havia pouca clareza nos movimentos abolicionistas sobre como a escravidão afetava a população feminina. Para as mulheres, a abolição da escravatura traria também o fim da ameaça de estupro por seus donos.

O termo Jim Crow se refere ao conjunto de leis que discriminavam e segregavam a população negra no Sul dos Estados Unidos até a década de 1960.

As experiências das mulheres negras eram tão distintas até aquele momento que outro termo, “Jane Crow”, foi criado tratar da discriminação específica contra essa população.

“É uma linha de pensamento que hoje podemos chamar de interseccionalidade, ou seja, o entendimento da política e do poder através de uma lente que leva em conta o racismo e o sexismo”, explica Jones.

“As mulheres negras lidam com desafios distintos, em particular a violência sexual. O termo chama atenção para a feminilidade negra, que não é levada em consideração em análises que postulam todos os negros como homens ou todas as mulheres como brancas.”

Participação no atual sistema político

Jones enxerga avanços e retrocessos na incorporação das mulheres negras ao longo dos anos.

Por um lado, ela lembra que, neste ano, o país registrou um recorde no número de candidatas negras concorrendo às eleições legislativas: um total de 117 mulheres filiadas aos partidos Democrata e Republicano.

Soma-se a esse número a candidatura da senadora democrata Kamala Harris à vice-presidência.

“Essa é uma história de como as mulheres negras estão presentes no sistema político americano. Mas há outra: mulheres negras são as mais pobres, as mais doentes etc. Ganhar espaço no sistema político não necessariamente se traduz em ganhos de políticas públicas”, explica.

Ela acrescenta: “Como no Brasil, que também é um país grande e diverso, é difícil fazer um balanço mais geral do grau de representatividade das mulheres negras. Se você é Stacey Abrams [ex-parlamentar estadual que foi candidata ao governo do Estado da Georgia] e vive na Georgia, pode ter uma eleição roubada de você. Mas você também pode ser Letitia James [procuradora geral no Estado de Nova York que investiga acusações contra a família Trump] e ouvir o depoimento de Eric Trump. Ambas as coisas são verdadeiras nesse momento político.”

A crise da democracia americana

Diante das notícias de supressão ao direito ao voto e as ameaças do presidente Trump de não aceitar o resultado das eleições, Jones vê a democracia do país como um processo de vigilância constante que permeia diversas gerações.

Ela lembra que, no século 19, mulheres negras perderam o direito de votar que haviam obtido em Estados como Nova York e Pensilvânia.

“Talvez a marca peculiar da nossa democracia seja uma espécie de instabilidade. Democracia é um processo, exige manutenção e participação. Se nós sobrevivermos a esse período que estamos vivendo agora, teremos adquirido um grande aprendizado”, opina.

Nesse sentido, a historiadora vê o movimento feminista negro com um papel educador.

Em um momento em que diversos países enfrentam uma crise de liderança política, Jones encontra lições nas histórias das mulheres de Vanguard que podem ser compartilhadas e replicadas.

“Sigam as mulheres negras, estudem suas histórias, acreditem nelas. Elas sabiam quem Donald Trump era há quatro anos e votaram sabendo disso, como nenhum outro grupo no país fez”, diz.

Ela sugere que prestemos atenção em como o movimento feminino negro faz política “no chão”.

“Elas entendem esse tipo de política, que envolve organização na base. Outro dia me perguntaram como poderíamos ajudar as mulheres negras a votar. Elas não precisam de ajuda. Precisamos é prestar atenção no que elas fazem e adotar as estratégias que elas usam”, acrescenta.

Jones também ressalta a capacidade dessas mulheres de dar qualidade ao debate público. Em outras palavras, elas sabem falar sobre ideais e aspirações, o que a historiadora considera essencial para o exercício da política.

“Isso para mim é liderança: saber trabalhar no chão e saber elevar o debate. Não adianta falar sobre ideais no Twitter. Temos que levá-los ao chão. Passei a admirar a capacidade dessas mulheres de fazer isso: trabalhar constantemente nos dois níveis”, conclui.

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Fonte: BBC