Keira Bell
Image caption ‘Eu deveria ter sido questionada sobre as considerações que fazia a mim mesma’, diz Keira Bell

Uma mulher de 23 anos está processando o sistema de saúde público britânico (NHS) sob a alegação de que a equipe médica que a atendeu deveria ter questionado sua decisão, ainda na adolescência, de fazer a transição do sexo feminino ao masculino.

O caso na Justiça britânica tramita contra a Tavistock and Portman, fundação que comanda o único serviço britânico voltado à identidade de gênero, chamado Gids.

Advogados da mulher argumentam que menores de idade não estão aptos a dar consentimento informado para o próprio tratamento com bloqueadores hormonais (que restringem os hormônios ligados a mudanças no corpo durante a puberdade, como a menstruação ou o surgimento de pelos faciais) ou para a transição de gênero.

Em resposta, a Tavistock afirma que mantém uma abordagem cautelosa no tratamento de crianças a adolescentes.

Outra organização ligada à identidade de gênero chamada Mermaids argumenta, por sua vez, que pessoas com disforia de gênero (ou incongruência de gênero, quando a pessoa sente desconforto ou sofrimento por haver uma desconexão entre seu sexo biológico e sua identidade de gênero) esperam em longas filas por acompanhamento médico.

Também argumenta que esse tipo de tratamento pode salvar a vida de jovens depressivos com disforia, e que poucos se arrependem quando mudam de gênero.

A mulher de 23 anos, chamada Keira Bell, é uma das reclamantes no processo contra a Tavistock. Ela passou pelo processo de transição para o sexo masculino, mas atualmente considera-se do sexo feminino.

A outra é a mãe (cuja identidade não foi divulgada) de uma menina autista de 15 anos que está aguardando tratamento.

Image caption ‘É uma área muito complexa, com sentimentos fortes em todos os lados’, diz médica do Tavistock

A história de Keira

Em entrevista à BBC, Keira diz que começou a fazer a transição de gênero na adolescência, quando leu na internet sobre o tema e buscou atendimento médico. Daí, diz, “um passo levou ao outro”.

Aos 16 anos, passou por três consultas de uma hora de duração e começou o tratamento com bloqueadores de puberdade durante um ano e, depois, com hormônios masculinos, que tomou por mais quatro anos e meio.

Nesse período, passou também por uma dupla mastectomia, para a remoção de seus seios.

Ela afirma que sente que sua intenção de mudar de sexo não foi suficientemente questionada antes que iniciasse seus procedimentos médicos.

“Eu deveria ter sido questionada sobre as considerações que fazia a mim mesma”, diz. “Acho que isso teria feito uma grande diferença. Se eu tivesse sido questionada nas coisas que eu dizia.”

“Inicialmente, me senti muito aliviada e feliz (com a transição sexual), mas acho que, à medida que os anos foram passando, me senti cada vez menos entusiasmada ou feliz. Você pode continuar e entrar cada vez mais nesse buraco, ou pode escolher sair disso e ter o peso tirado das suas costas.”

No ano passado, ela decidiu parar de tomar hormônios de transição sexual e passou a aceitar-se como mulher. Mas também ressentiu-se do tratamento pelo qual passou.

“Me permitiram seguir adiante com as ideias que eu tinha na adolescência, quase uma fantasia, e isso me afetou no longo prazo, como adulta”, conta.

No processo, seus advogados afirmam que crianças não são capazes de ponderar o impacto do tratamento em suas vidas futuras, incluindo, por exemplo, em sua fertilidade.

Também na Justiça, uma ex-enfermeira da Tavistock and Portman processa a entidade sob o argumento de que bloqueadores de puberdade estariam sendo receitados a crianças muito novas, de 12 anos, sem avaliações psicológicas “adequadas”.

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Image caption Conselho Federal de Medicina brasileiro publicou em janeiro resolução ampliando o acesso ao atendimento de pessoas com incongruência de gênero

Mas Keira diz que entende por que jovens e crianças chegam à clínica tão atormentados e desesperados para mudar seu próprio gênero.

“Eu me sentia assim quando cheguei lá. Dizia que (a transição) me salvaria de ideias suicidas e da depressão. Na época, senti que (o tratamento) aliviava todas as questões de saúde mental que eu sentia, além da disforia de gênero”.

Ela também afirma que, se tivesse sentido mais aceitação social durante a adolescência, talvez não tivesse tido vontade de mudar o próprio gênero — mas agrega que provavelmente teria tido dificuldade em ouvir vozes que tivessem tentado dissuadi-la.

“Essa é a questão: quando você é jovem, você não quer ouvir. Então, acho que cabe a essas instituições, como a Tavistock, entrar em cena e fazer as crianças pensarem, porque é um caminho que muda toda a sua vida.”

O que diz a Tavistock

A médica Polly Carmichael é diretora do serviço de identidade de gênero da Tavistock e, também em entrevista à BBC, ela elogia Keira por falar a respeito do tema, mas defende que a clínica tem um processo de avaliação cauteloso nos casos de transição de gênero.

Segundo ela, trabalha-se em conjunto com as famílias e as crianças para tomar as melhores decisões possíveis — e em menos da metade dos casos avaliados inicialmente são receitados bloqueadores de puberdade ou hormônios de transição sexual.

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Image caption Sistema público britânico de transição de gênero é alvo de um processo judicial no Reino Unido

“É uma área muito complexa, com sentimentos fortes em todos os lados”, diz. “E, no centro, estão os jovens que atendemos. Eles costumam chegar a nós muito abalados a respeito de quem são. Estamos falando sobre a identidade deles, e o sentimento de que essa identidade não se encaixa em seu corpo.”

Ela acredita que as audiências judiciais, quando ocorrerem, serão uma oportunidade importante de garantir que sejam examinadas as evidências em torno do tratamento e da habilidade das crianças em consentir.

“Esse é um debate acalorado no momento. E acho que dar um passo para trás — e ter uma visão externa sobre as evidências e os sentimentos das pessoas quanto à melhor forma de apoiar os jovens — é benéfico.”

‘Apenas 1% de arrependidos’

A ONG Mermaids é dedicada à identidade de gênero e oferece apoio a jovens britânicos e suas famílias. Sua executiva-chefe, Susie Green, é defensora dos atuais procedimentos adotados pela Tavistock.

Ela afirma que as crianças com disforia passam um ano com acompanhamento antes de serem medicadas e recebem “muita informação sobre os prós e contras da decisão” para serem capazes de dar um consentimento informado. “Também há consentimento parental”, agrega.

“Há um pequeno número, estimado em 1%, (de jovens arrependidos após a transição de gênero), então não é proporcional que ninguém tenha acesso ao tratamento. (…) É um trabalho baseado em anos de pesquisa”, diz.

Ela agrega que há pesquisas acadêmicas mostrando que intervenções do tipo em crianças em jovens reduzem os casos de suicídio e automutilação, “salvando vidas”.

Ao mesmo tempo, o NHS anunciou que fará uma revisão independente de suas políticas no uso de bloqueadores de puberdade e hormônios de transição sexual.

Image caption ‘Há um pequeno número, estimado em 1%, (de jovens arrependidos após a transição de gênero)’, diz Susie Green

E no Brasil?

Em 9 de janeiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução ampliando o acesso ao atendimento de pessoas com incongruência de gênero e permitindo que o tratamento hormonal cruzado (ou seja, tomar hormônios que ajudem na transição de gênero) agora seja feito a partir dos 16 anos — antes, era aos 18 anos.

Procedimentos cirúrgicos, porém, só podem ocorrer depois dos 18 anos, e pacientes têm de ter passado por “no mínimo um ano de acompanhamento por uma equipe multiprofissional e multidisciplinar”. Essa equipe incluiria, no mínimo, psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico.

Segundo o CFM, a resolução é fruto de mais de dois anos de análises e discussões, que levaram em conta “além de aspectos éticos e legais, diferentes estudos clínicos sobre o assunto”.

Entrevistado pela BBC News Brasil em janeiro, o urologista Tiago Rosito, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, defendeu que a resolução é benéfica ao permitir atenção médica a pessoas que desde cedo se identificam como transgênero “e evitar que elas passem por grande sofrimento ou mesmo caiam em mãos erradas” de tratamentos irregulares. “É seguro e melhor começar mais cedo.”

Ao mesmo tempo, agregou que não se pode “bloquear a puberdade sem ter certeza absoluta (de que o paciente é transgênero). Por isso é preciso vê-lo da maneira mais neutra possível, deixando de lado questões religiosas ou sociais que causam uma névoa. A questão é se cercar dos melhores especialistas e estrutura (para avaliar cada caso).”


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Fonte: BBC