THIAGO AMÂNCIO
WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – A Suprema Corte dos Estados Unidos julga neste mês duas ações que podem tornar ilegal que universidades considerem a raça dos candidatos em processos de admissão -decisões que analistas apontam que vão alterar de forma substancial o panorama das instituições de ensino americanas.

As ações foram movidas contra as universidades Harvard e da Carolina do Norte. Embora cotas raciais sejam proibidas nos EUA, universidades podem, na maioria dos estados, criar métodos para estimular o ingresso de estudantes negros e hispânicos.

Dada a composição de maioria conservadora da atual Suprema Corte, no entanto, a expectativa de analistas é de uma decisão que proíba essas ações afirmativas. Seria a segunda vez em um ano que uma decisão do colegiado altera políticas consideradas históricas -a primeira foi a mudança do entendimento de quase 50 anos que descaracterizou o acesso ao aborto como um direito constitucional.

Os casos em discussão foram impetrados pela SFFA (estudantes pela admissão justa, da sigla em inglês), que diz representar 20 mil estudantes e pais que discordam das ações afirmativas. A entidade foi criada pelo estrategista conservador Edward Blum, que questiona esse tipo de medida desde os anos 1990.

As universidades são acusadas agora de discriminarem alunos brancos e de ascendência asiática em favor de negros, hispânicos e indígenas -o que as instituições negam.

“A Suprema Corte deve considerar as ações afirmativas inconstitucionais, e as universidades vão ter que encontrar outras maneiras para aumentar a diversidade dos alunos”, diz Donald P. Harris, professor da Universidade Temple, na Pensilvânia, e reitor associado para assuntos de equidade, diversidade e inclusão na faculdade de direito da instituição. “Vão considerar fatores como contexto geográfico, status socioeconômico e outros indicadores para substituir critérios de raça, mas não vai ser fácil.”

Hoje, nove estados americanos já impedem o uso de ações afirmativas. Michigan é um deles. Em 2006, um referendo aprovado por 58% da população proibiu o uso de raça, gênero e religião em processos seletivos de universidades e vagas de empregos. A mudança teve impacto imediato no perfil demográfico dos alunos universitários no estado. A proporção de estudantes negros na Universidade de Michigan caiu de cerca de 8% na época para 2,5% hoje -o número de alunos hispânicos, no entanto, permaneceu similar.

Sem poder usar os critérios de raça para admissão, a universidade passou a adotar políticas focadas em classe social para aumentar a diversidade, conta Erica Sanders, vice-reitora assistente e diretora-executiva de admissão de graduandos.

“Realizamos campanhas de recrutamento em locais com populações historicamente sub-representadas, focando alunos de baixa renda e cujos pais não têm graduação, mesmo sabendo que isso não necessariamente se sobrepõe a critérios de raça. Organizamos visitas ao campus para apresentá-los à comunidade universitária e mostrar os serviços que oferecemos”, explica Sanders.

A experiência em Michigan e em estados como a Califórnia -o primeiro a proibir ações afirmativas, em 1996-, onde universidades embranqueceram após a medida, mostram que “substituir a questão da raça pela classe econômica não resolve o problema chave dos sistemas de racismo estrutural históricos e ainda existentes nos EUA”, diz Sara Kaplan, diretora do Centro de Pesquisa e Política Antirracista da American University.
Para ela, proibir ações afirmativas teria impactos dos mais variados, desde o aumento da disparidade de renda até a mudança nas prioridades da pesquisa acadêmica, tornando a produção científica do país menos diversa.

Já os argumentos contrários às políticas afirmativas incluem, além de suposta discriminação contra alunos brancos, a falta de perspectiva para o fim dessas ações, utilizadas nos EUA desde os anos 1960.

O mecanismo remonta à luta pelos direitos civis, primeiro como uma maneira de impedir que pessoas de minorias raciais fossem excluídas do mercado de trabalhos. Um decreto de John Kennedy em 1961 dizia que empresas com contratos com o governo federal deveriam adotar “ações afirmativas para garantir que os candidatos sejam tratados igualmente sem distinção de raça, cor, religião, sexo ou origem nacional”.

Em 1978, no entanto, uma decisão da Suprema Corte considerou ilegal a reserva de cotas para minorias raciais ao analisar um caso da Universidade da Califórnia em Davis, que havia reservado 16 de 100 vagas de medicinas para grupos minoritários. A mesma decisão, porém, considerou legítimas ações afirmativas que considerassem raça como um dos critérios para admitir alunos. Decisões posteriores do tribunal confirmaram a legalidade da medida, ainda que com eventuais restrições.

Trinta e cinco anos depois, em 2003, um novo caso em Michigan levou a discussão novamente à mais alta instância da Justiça americana. O colegiado, à época, manteve o entendimento vigente. Agora, porém, a Suprema Corte em sua formação atual -seis dos nove magistrados são da ala mais conservadora- deve mudar o cenário.

A maioria dos americanos é favorável à manutenção das ações afirmativas, segundo pesquisa da Associated Press e da Universidade de Chicago divulgada na semana passada. Ao todo, 63% da população defende que a Suprema Corte não proíba o mecanismo nos sistemas de admissão.

Apesar disso, entre os pontos que devem ser considerados importantes para as universidades aceitarem novos alunos, os americanos citam como critérios mais relevantes do que a raça o histórico escolar, o desempenho no vestibular, a capacidade de pagar o curso e as habilidades esportivas.

No Brasil, lei de 2012 que reserva metade das vagas em instituições federais para cotas (divididas entre critérios raciais e sociais) já teve sua constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal.

Nos EUA, o sistema de admissão é diferente. Enquanto a ampla maioria das universidades brasileiras utilizam apenas o vestibular como critério de admissão, as americanas podem usar, além de uma prova, critérios como histórico escolar do candidato e cartas de apresentação e recomendação. Assim, é comum que o processo seja menos objetivo, sobretudo porque muitas instituições não divulgam seus métodos.

“Mas raça é um critério relativamente até pouco utilizado na admissão nas universidades”, diz Julie Park, professora da Universidade de Maryland. Pesquisa de 2019 da Associação Nacional de Aconselhamento para Admissão em Faculdades apontou que apenas 24,6% das instituições dizem que a raça tem influência considerável ou moderada nos processos de admissão.