“Não somos apenas atletas. Somos pessoas, afinal de contas, e às vezes é preciso dar um passo atrás”, disse a ginasta norte-americana Simone Biles nesta terça-feira (27/7) ao deixar a arena da Olimpíada de Tóquio e colocar em dúvida se participará de outras provas na quinta-feira.
Apesar de nem todos terem a visibilidade de Biles ou viverem a pressão a que atletas são submetidos na competição mais importante do mundo, o gesto da atleta pode servir como lição e reflexão para todos nós, segundo especialistas em saúde mental entrevistadas pela BBC News Brasil.
“Hoje se fala mais da saúde mental nos esportes, na música, na educação, e o fato de tocar nisso desmistifica o assunto”, afirma Lívia Castelo Branco, psiquiatra da clínica Holiste Psiquiatria.
“Há artistas que escolhem se afastar das redes sociais, ou atletas que decidiram nem entrar nas Olimpíadas. Quando se trata de um problema físico, as pessoas conseguem falar de forma mais natural — por exemplo, que houve uma ruptura do ligamento do joelho, por isso o atleta está afastado. Já a saúde mental, por mais que estejamos falando mais nela, é mais difícil de mensurar e abordar”, completa.
“Algumas pessoas vão encarar a desistência como falta de vontade ou covardia, mas na verdade é um ato de coragem muito grande expor a dificuldade, a fraqueza, a saúde mental ao público.”
A psicóloga Valeska Bassan, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), também destaca a “coragem” de Simone Biles ao reconhecer e expor seus limites — e sugere que a decisão pode ter sido motivada por fatores relacionados ao estresse, mas também por autoconhecimento.
“Precisamos aprender que podemos desistir. A gente se programa, se prepara, tem um foco, mas em algum momento esse foco pode ser diferente”, destaca a psicóloga.
“É se perguntar: por que preciso passar por tudo isso? E, principalmente, para quem?”, aponta Bassan, destacando as pressões externas às quais Biles, e todos nós, estamos submetidos.
“No dia-a-dia, vemos muitas situações assim relacionadas ao trabalho. Por exemplo, uma pessoa que cursou uma faculdade ou exerce uma profissão para cumprir a expectativa da família. Ou nos relacionamentos, já que foi imposto socialmente que casar é pra sempre.”
“Por tentar atender às expectativas dos outros, a pessoa acha que desistir é um fracasso porque estaria decepcionando mais pessoas.”
A própria Simone Biles apontou para a pressão externa que vive.
“Acho que a saúde mental é mais importante nos esportes nesse momento. Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos”, afirmou a atleta, que já foi quatro vezes medalhista de ouro nas Olimpíadas.
Atenção aos sinais
A atleta desistiu de seguir na competição nesta terça-feira depois de marcar a pontuação mas baixa no salto olímpico.
“Depois da apresentação que fiz, simplesmente não queria continuar”, disse ela.
“Eu não confio mais tanto em mim mesma. Talvez seja o fato de estar ficando mais velha.”
“Eu não queria ir lá, fazer algo estúpido e me machucar. Sinto que muitos atletas se manifestando realmente me ajudou.”
Para a psiquiatra Lívia Castelo Branco, o que Biles manifestou não parece ser uma decisão impulsiva, mas sim alguma questão de saúde mental que vinha escalando. Algo que todos nós, atletas ou não, podemos observar com sinais — e, com sorte, buscarmos ajuda em um ambiente que seja acolhedor, como uma equipe técnica que não apenas cobre, mas escute.
No trabalho, as pessoas podem perceber que estão desgastadas emocionalmente, por exemplo, se há frequentes faltas, queda de produtividade, entre outras.
Valeska Bassan menciona também alterações no sono, na alimentação, pensamentos repetitivos, burnout, a sensação de incapacidade ou estímulo para fazer atividades conhecidas, e o próprio sofrimento.
Ignorar tudo isso não só deixa de resolver, como pode agravar nossas atividades profissionais, sociais, entre outras.
“A nossa saúde física e mental está interligada. Eu brinco que o corpo é o porta-voz da psique: quando não estamos dando conta ou não damos atenção à saúde mental, o corpo dá um jeito de parar e avisar”, explica a psicóloga.
Os sintomas citados pelas especialistas não configuram necessariamente de uma patologia, como a depressão ou ansiedade — mas podem ser, e por isso a assistência profissional é recomendada.
Lívia Castelo Branco diz que, na maioria dos casos, o acompanhamento psicológico é suficiente, mas em alguns, a intervenção com medicamentos — sob orientação médica — pode ser necessária. Pelo cotidiano de pressões a que são submetidos, a psiquiatra diz que é esperado que atletas tenham acompanhamento psicológico a longo prazo.
Bassan reconhece que a realidade de muitas pessoas não permite, por exemplo, largar um emprego estressante ou mesmo acessar ajuda profissional. Mesmo nesses casos, a reflexão é importante.
“Se a gente pensar no trabalho, é mais difícil desistir sem ter respaldo (financeiro). Mas tem algumas situações que valem a reflexão: por exemplo, tenho esse trabalho que me traz renda, mas compromete meu bem-estar. Será que dentro das minhas possibilidades tenho como ajustar minhas condições financeiras para ter maior prazer em um novo trabalho?”
“A resiliência tem limite.”
A psicóloga diz que buscar atendimento profissional é sempre o mais adequado, mas pode aliviar o sofrimento também a conversa com pessoas queridas, praticar exercícios e se engajar em atividades que deem prazer.
“Se perceber, se observar e se respeitar também já é um grande passo”, completa Bassan.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Fonte: BBC