Antonia Barra.Direito de imagem Arquivo família Antonia Barra
Image caption Antonia Barra se matou aos 21, em outubro de 2019, deixando registros de que tinha sido estuprada

“Somos uma família normal, da tão falada classe média do Chile. Com muito esforço, sacrifício, estudo, conseguimos viver tranquilos. Tivemos cinco filhos, um homem e quatro mulheres… mas uma delas não está mais conosco.”

Assim se apresenta Alejandro Barra à BBC.

A filha ausente é Antonia, uma jovem que tirou a própria vida em outubro de 2019, aos 21 anos, depois de deixar dois relatos contando ter sido estuprada.

O acusado, Martín Pradenas, 28, estava em prisão domiciliar, à espera de um julgamento que teve sua primeira audiência na última quinta-feira (23) e que tem comovido a população chilena. Ele nega o crime.

Na sexta-feira, a Corte de Apelações da cidade de Temuco, no sul do país, revisou as decisões tomadas na Primeira Instância da Justiça e atendeu a um pedido da Promotoria: revogou a prisão domiciliar e a substituiu por prisão preventiva, por considerar o acusado um “perigo à sociedade”.

A audiência, realizada pela internet, foi acompanhada em peso pelo público em geral: o canal do Poder Judiciário teve um milhão de acessos, uma cifra recorde.

É o que escolheu Alejandro Barra: dar a maior visibilidade possível ao caso, não só para fazer justiça à filha, diz ele, como para dar a outras meninas e mulheres a chance que Antonia não teve em vida: a de denunciar o estupro sem temer o estigma e a humilhação.

“A decisão (suicídio) da minha filha foi muito dolorosa para nós. E percebemos que ela tinha a ver com a vergonha, a dor”, diz ele.

O caso

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Image caption Protesto inspirado no coletivo feminista La Tesis, cuja intervenção para denunciar crimes sexuais deu visibilidade a casos no Chile

Quase um mês antes de cometer suicídio, em 18 de setembro, a jovem havia se encontrado com Pradenas em uma casa noturna. De lá, ele a levou a um chalé alugado, onde estava um grupo de amigos seus.

Os fatos que se seguiram foram reconstruídos, entre outras provas, por meio dos áudios que Antonia deixou, pedindo ajuda a uma de suas amigas e contando do estupro para um ex-namorado.

No dia em que soube da morte da filha, Barra conta que estava dirigindo, na estrada.

“Uma hora antes de chegar em casa, me contaram o que havia ocorrido. Tem uns primeiros segundos em que você pensa em fazer alguma loucura. Mas algo me freou, me acalmou. E tive uma hora para pensar que algo muito grave teria que ter acontecido para a minha filha tomar aquela decisão. Porque eu sei como ela era: responsável, uma menina que queria viver, que queria viajar aos Estados Unidos, que queria sair e percorrer o mundo”, conta.

Ao inspecionar o celular da filha, conversar com amigos e escutar áudios descrevendo o estupro (alguns gravados sem o consentimento de Antonia), Barra começou a compreender as circunstâncias por trás do suicídio.

“Isso aconteceu no domingo. Na segunda-feira de manhã, eu já estava fazendo comunicados à emissora local. Chamei a imprensa, disse que havia motivos para o suicídio da minha filha. Assim começaram as reportagens. Eu tive que fazer isso.”

E assim se iniciou a mobilização do público em torno do caso.

“Ela (Antonia) não quis criar problemas para seus pais. Não queria que o pai soubesse (do estupro), que fosse à porta do acusado dar-lhe a surra que merece. Semanas se passaram, e minha filha nunca contou o que estava acontecendo”, relata.

“Hoje eu penso: quantas meninas iguais à minha filha, que, por vergonha da exposição, de ter o dedo apontado a elas, não denunciam? Uma menina que se atreve a denunciar um criminoso deve ser aplaudida. É isso que quero obter. Porque faltou à minha filha que eu e a sociedade inteira lhe disséssemos: tudo tem solução. Eu digo às meninas: se algo assim acontece com vocês, contem. Não acreditem que vão lhe apontar o dedo, que vai sair nas redes, porque tudo isso pode ser solucionado. Tudo, menos a morte.”

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Image caption Audiência do caso gerou enorme tráfego no canal do Poder Judiciário

Em julho, pouco antes do início do julgamento, Pradenas postou um vídeo no YouTube sustentando sua inocência. Seu advogado diz que o relacionamento sexual com Antonia foi consensual.

Sinalização às mulheres

A morte de Antonia ocorreu uma semana antes que dezenas, depois centenas e finalmente milhares de mulheres chilenas começassem a entoar uma frase que virou notícia em todo o mundo: “o estuprador é você”.

A frase, lançada pelo coletivo feminista Las Tesis junto à mensagem “e a culpa não foi minha, nem de onde eu estava nem do que eu vestia” e a uma coreografia, marcou intervenções e protestos pelo país.

“Se Las Tesis tivessem (feito intervenções) uma semana antes. Se a minha filha as tivesse escutado…”, lamenta Barra.

O pai conta que o Las Tesis tem lhe dado apoio frequente. Mas pede também que a Justiça chilena mande um sinal a mulheres e famílias do país.

“Acredito que a Justiça tem que ter um papel em tirar os estigmas que fazem com que uma mulher estuprada, abusada não queira denunciar”, queixa-se.

O juiz do caso, Federico Gutiérrez, começou o processo descartando três dos crimes imputados a Pradenas pela Promotoria e desconsiderando, por prescrição, duas acusações de abusos sexuais apresentadas por outras duas jovens, por episódios ocorridos em 2010 e 2014.

“No Chile, temos muitos casos em que as pessoas com recursos têm vantagens sobre as vítimas. Isso tem que mudar. A demanda de igualdade na sociedade é a mesma que a minha: que a Justiça seja justa, que não haja outras influências, que o caso não se contamine. Eu acredito na Justiça”, prossegue Barra.

“(Mas) se as pessoas virem que este pai fez todo o possível, contra toda a dor e a vergonha que gera uma situação como esta, e fez mesmo assim, mas não deu em nada, então ninguém mais vai ter coragem de denunciar. Por isso, acho que a missão é muito maior hoje. Precisamos dar confiança às vítimas de que há justiça no Chile, de que o mundo não vai jogar a culpa nelas.”

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Image caption Caso de Antonia teve grande repercussão nos meios chilenos

“Se a minha filha tivesse tido essa convicção…”, lamenta.

Exposição

Apesar desse ímpeto, Barra diz que a exposição midiática não tem sido fácil.

Uma emissora de TV teve acesso a imagens de uma câmera de segurança mostrando Antonia junto a Pradenas, e essa cena é repetida à exaustão no noticiário. Em meados de junho, uma ordem policial determinou que a família Barra não poderia divulgar informações sobre o acusado e deveria apagar postagens relativas a ele feitas em redes sociais.

Durante a cobertura do caso, um jornalista comentando na TV questionou o comportamento prévio de Antonia — comentário esse que levou a sua demissão.

Barra não se queixa disso. “Eu aceito as desculpas dos meios (de comunicação), porque é disso que se trata, de construir a sociedade. Não de sepultar uma pessoa por algo que disse uma vez, mas sim de aceitar as desculpas, seguir adiante. E nos concentramos nos crimes graves”, afirma o pai.

Ele diz se preocupar com o fato de as vítimas de abusos sexuais não conhecerem os procedimentos legais nem suas opções.

“Por que há mais publicidade de bebidas do que de informações sobre os caminhos que uma menina estuprada deve seguir? Temos que dizer a elas onde têm que ir, os protocolos a seguir, que serão interrogadas só uma vez.”

“Quero que ressoe muito na cabeça dos chilenos, desta sociedade, que neste canto do continente somos mais machistas, que esse tema demorou muito (a ser abordado). Aqui é uma panela de pressão, temos de nos educar, dar visibilidade, educar e informar a todos sobre a segurança das mulheres”, ele prossegue.

“Quando fizermos isso, vamos solucionar não apenas um problema pontual do machismo, vamos solucionar um problema de humildade, tolerância. (…) A sociedade se deu conta de que por trás do nosso caso houve todo um trabalho. Nos destroços, esta família optou por seguir adiante, com toda a tristeza do mundo, para recuperar a honra da minha vida, a justiça, por ela e por outras mulheres.”

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Fonte: BBC