• Robert Jacobs
  • The Conversation*

homem entrega pão para uma mulher

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Esquecer detalhes, como o que você comeu na padaria, pode significar uma boa memória

Quando questionado outro dia sobre a padaria perto da minha casa, eu respondi que, recentemente, havia comido seus cookies com pedaços de chocolate, de dar água na boca. Minha mulher me corrigiu, lembrando que os cookies que eu havia comido na verdade eram de passas e aveia. Por que eu cometi esse erro de memória? Seria um sinal inicial de uma demência iminente? Será que eu deveria ligar para o meu médico?

Ou será que esquecer detalhes de uma sobremesa é algo bom, considerando que nosso dia a dia é repleto de um número enorme de detalhes, demais para o finito cérebro humano lembrar-se corretamente de tudo?

Sou um cientista cognitivo e tenho estudado a percepção e a cognição humanas há mais de 30 anos. E eu e meus colegas temos desenvolvido novas maneiras teóricas e experimentais de explorar esse tipo de erro.

Será que esses erros de memória são ruins, resultado de um processo de falha mental? Ou será que, contraintuitivamente, eles podem ser algo bom, um efeito colateral desejável de um sistema cognitivo com capacidade limitada para funcionar de maneira eficaz? Nós estamos inclinados a acreditar na segunda opção — os erros de memória podem, na verdade, indicar uma forma pela qual o sistema cognitivo humano é “otimizado” e “racional”.

As pessoas são racionais?

Durante décadas, cientistas cognitivos questionaram se a cognição humana é estritamente racional. Na década de 1960, os psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky conduziram uma pesquisa pioneira nesse tópico. Eles concluíram que as pessoas frequentemente usam estratégias mentais “rápidas e sujas”, também conhecidas como heurísticas.

Por exemplo, quando perguntada se a língua inglesa tem mais palavras começando com a letra “k” ou com “k” na terceira letra, a maioria das pessoas diz que há mais palavras começando com “k”. Kahneman e Tversky argumentaram que as pessoas chegam a essa conclusão ao pensar rapidamente em palavras que começam com “k” e nas que tenham “k” na terceira posição e perceber que conseguem pensar em mais palavras começando com “k”. Kahneman e Tversky referiram-se a essa estratégia como “heurística disponível” — o que vem mais facilmente à cabeça influencia sua conclusão.

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Erros de memória podem indicar um funcionamento otimizado e racional do cérebro

Embora heurísticas gerem bons resultados com frequência, às vezes isso não acontece. Portanto, Kahneman e Tversky argumentaram que não, a cognição humana não é otimizada. Na verdade, a língua inglesa tem muito mais palavras com “k” na terceira posição que palavras começando com “k”.

Subotimizada ou o melhor que dá?

Nos anos 1980, entretanto, pesquisas começaram a aparecer na literatura científica sugerindo que a percepção e a cognição humanas podem ser frequentemente otimizadas. Por exemplo, vários estudos identificaram que as pessoas combinam informações vindas de múltiplos sentidos — como visão e audição, ou visão e tato — de uma maneira que é estatisticamente otimizada, apesar do ruído nos sinais sensoriais.

Talvez mais importante, pesquisas mostraram que pelo menos algumas situações de comportamento aparentemente subotimizado são, na verdade, o contrário. Por exemplo, era bem sabido que as pessoas às vezes subestimam a velocidade de um objeto em movimento. Então cientistas lançaram a hipótese de que a percepção humana visual de movimento é subotimizada.

Mas pesquisas mais recentes mostraram que a interpretação ou percepção sensorial estatisticamente optimizada é aquela que combina informação visual sobre a velocidade de um objeto com o conhecimento geral de que a maior parte dos objetos no mundo tende a estar estacionada ou se mover vagarosamente. Além disso, essa interpretação otimizada subestima a velocidade de um objeto quando a informação visual é cheia de ruídos ou de baixa qualidade.

Como a interpretação teoricamente otimizada e a verdadeira interpretação das pessoas cometem erros semelhantes em circunstâncias semelhantes, pode ser que esses erros sejam inevitáveis quando a informação visual é imperfeita e que as pessoas estejam, na verdade, percebendo velocidades de movimentos tão bem quanto elas podem ser percebidas.

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Medir a velocidade de um objeto em movimento é um desafio para o cérebro humano

Cientistas encontraram resultados correlatos quando estudavam a cognição humana. Frequentemente as pessoas cometem erros quando se lembram, racionalizam, decidem, planejam ou agem, especialmente em situações quando a informação é ambígua ou incerta.

Como no exemplo da percepção de estimativa visual de velocidade, a estratégia “estatística” quando se desempenham tarefas cognitivas é combinar informação vinda de dados, como coisas que alguém observou ou vivenciou, com conhecimento geral sobre como o mundo normalmente funciona.

Pesquisadores identificaram que erros cometidos por estratégias otimizadas — erros inevitáveis devido à ambiguidade ou à incerteza — lembram os erros que as pessoas realmente cometem, o que sugere que as pessoas podem estar desempenhando tarefas cognitivas tão bem quanto elas podem ser desempenhadas.

Há evidência sendo acumulada de que erros são inevitáveis quando se percebe e racionaliza com dados ambíguos e informação incerta. Se for isso, então erros não são necessariamente indicadores de um processo mental com falhas. De fato, os sistemas de percepção e cognição das pessoas podem, na verdade, estar funcionando muito bem.

Seu cérebro, sob restrições

Geralmente há restrições sobre o comportamento mental humano. Algumas restrições são internas: as pessoas têm capacidade limitada de prestar atenção — você não pode dedicar sua atenção a tudo simultaneamente. E as pessoas têm capacidade limitada de memória — você não consegue lembrar de tudo nos mínimos detalhes.

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As pessoas têm capacidade de memória limitada e não podem memorizar todos os detalhes

Outras restrições são externas, como a necessidade de decidir e agir dentro de um certo tempo. Considerando essas restrições, pode ser que as pessoas não possam desempenhar sempre uma percepção ou uma cognição otimizadas.

Mas — e este é um ponto-chave —, embora suas percepção e cognição possam não ser tão boas quanto poderiam ser caso não houvesse restrição alguma, elas devem ser tão boas quanto podem ser considerando a presença dessas restrições.

Considere um problema cuja solução exige que você pense simultaneamente sobre muitos fatores. Se, devido a limites de capacidade de atenção, você não pode pensar sobre todos os fatores ao mesmo tempo, então você não será capaz de pensar numa solução otimizada. Mas, se você pensar sobre quantos fatores pode manter ao mesmo tempo na sua mente, e se esses são os fatores mais informativos para o problema, então você será capaz de pensar numa solução que é tão boa quanto é possível ser, dada a sua limitada atenção.

Os limites da memória

Essa abordagem, enfatizando a “otimização restrita”, é às vezes conhecida como abordagem “recurso-racional”. Eu e meus colegas desenvolvemos uma abordagem recurso-racional para a memória humana. Nossa estrutura pensa na memória como um tipo de canal de comunicação.

Quando você coloca um item na memória, é como se você estivesse enviando uma mensagem a você mesmo no futuro. Entretanto, esse canal tem capacidade limitada, e dessa forma não consegue transmitir todos os detalhes da mensagem. Consequentemente, uma mensagem recuperada da sua memória depois de um tempo pode não ser a mesma que foi plantada em sua memória num tempo anterior. É por isso que erros de memória ocorrem.

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Como num arquivo, a capacidade de armazenamento do cérebro humano é limitada

Se seu armazenamento de memória não pode manter fielmente todos os detalhes dos itens armazenados por causa de sua capacidade limitada, então seria bom garantir que os detalhes que ele mantenha sejam aqueles importantes. Ou seja, a memória deveria ser a melhor possível dentro de circunstâncias limitadas.

Realmente, pesquisadores identificaram que as pessoas tendem a lembrar detalhes relevantes a uma tarefa e esquecer detalhes irrelevantes. Além disso, as pessoas tendem a lembrar a ideia geral de um item colocado na memória, enquanto se esquecem seus detalhes menores. Quando isso acontece, as pessoas tendem a mentalmente “preencher” os detalhes que estão faltando com as propriedades mais frequentes ou comuns. De certa forma, o uso de propriedades comuns quando detalhes estão faltando é um tipo de heurística — é uma estratégia rápida-e-suja que vai funcionar bem com frequência, mas às vezes falha.

Por que eu me lembrava de ter comido cookies com pedaços de chocolate quando, de fato, eu havia comido cookies de passas de aveia? Porque eu me lembrei do principal da minha experiência – ter comido cookies -, mas havia me esquecido dos pequenos detalhes, e então preenchi esses detalhes com as propriedades mais comuns -— nesse caso, cookies com pedaços de chocolate. Em outras palavras, esse erro demonstra que minha memória está funcionando tão bem quanto possível, diante de suas restrições. E isso é uma coisa boa.

Este texto foi publicado originalmente no site The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original.

*Robert Jacobs é professor de ciências cognitivas e do cérebro na Universidade de Rochester, no Estado de Nova York, nos Estados Unidos.

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Fonte: BBC

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