• Camilla Veras Mota – @cavmota
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Homem segura cartaz com os dizeres 'Cancelem a Olimpíada de Tóquio'

Crédito, Reuters

Pesquisa realizada em maio mostrou que 83% dos japoneses eram a favor do cancelamento ou adiamento dos jogos

O Japão aprovou a primeira vacina para uso contra a covid-19 no dia 14 de fevereiro deste ano, dois meses depois de países como Estados Unidos e Reino Unido.

Após o início tardio da campanha, a imunização em massa não avançou como planejado: poucos dias antes do início da Olimpíada de Tóquio, apenas 35% dos japoneses haviam recebido pelo menos a primeira dose. O percentual é menor que o do Brasil, onde a parcela de imunizados com uma dose ou imunização completa chega a 45%, conforme os dados da plataforma Our World in Data.

As autoridades japonesas também não conseguiram evitar um aumento de casos de covid-19 e a disseminação na Vila Olímpica: nesta sexta (23/07), passavam de 100 os diagnósticos entre atletas, membros de delegações e jornalistas.

O cenário é o oposto da imagem do Japão eficiente que o mundo se acostumou a ver retratado nas últimas décadas. Inclusive nos momentos de crise: a reação ao terremoto e tsunami na região de Fukushima em 2011, para citar um episódio mais recente, foi notícia no mundo. Na época, o país chegou a reconstruir em apenas seis dias uma rodovia na cidade de Naka partida ao meio pelo desastre.

Ritmo da vacinação. Países selecionados - em % do total da população. .

O que deu errado?

O combate à pandemia no país vem sofrendo críticas desde o início. Em agosto de 2020, um artigo publicado no periódico científico British Medical Journal (BMJ) apontou problemas que iam desde uma capacidade reduzida de testagem, que acabou elevando o número de casos não diagnosticados e, por consequência, as infecções, a falhas na comunicação da importância do distanciamento social e da necessidade de ficar em casa para proteger o sistema de saúde.

O texto, assinado pelos pesquisadores Kazuki Shimizu e Elias Massalo, do departamento de Política de Saúde da London School of Economics and Political Science, e Haruka Sakamoto, da Universidade de Tóquio, fala ainda de uma “tensão entre a política e ciência”.

O comitê de especialistas montado no início do surto, exemplificam os estudiosos, não chegou a ter pluralidade e autonomia para que tivesse a importância que deveria no processo decisório. Também teria faltado ao governo maior transparência — a própria decisão de adiar os Jogos Olímpicos, segundo o artigo, foi tomada de forma abrupta e sem que fossem detalhadas suas razões.

Para Craig Mark, professor de relações internacionais da Universidade de Kyoritsu, em Tóquio, uma das explicações para a postura errante do governo foi a tentativa de preservar a economia.

“O governo não queria se colocar na posição de impor medidas mais severas. O argumento usado foi de que a Constituição do Japão não dá ao Executivo o poder de implementar lockdowns, mas isso poderia ter sido alterado por meio de lei com aprovação do Parlamento. O governo escolheu não seguir esse caminho”, afirma.

Ainda assim, o país ficou bem longe dos recordes de casos e mortes observados pelo mundo. Entre os 126 milhões de habitantes, até o momento foram registradas pouco mais de 15 mil óbitos pela doença. Na comparação pelo critério de mortes por milhão de habitantes, o Japão segue bem atrás de países como Brasil, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Alemanha.

Uma das explicações é a autodisciplina do povo japonês, que cumpriu em boa medida as recomendações para uso de máscara e para que fossem evitadas aglomerações.

“O governo tem se apoiado no senso de cooperação dos japoneses, mas isso tem um limite, especialmente agora, com a disseminação da variante Delta“, avalia Mark.

“E há um desgaste, por exemplo, entre os jovens, que querem sair de casa, encontrar os amigos. Já vi bares vendendo bebidas alcoólicas após o horário permitido pelas medidas de restrição”, ele conta.

Diante do aumento de casos às vésperas dos Jogos, o Japão declarou estado de emergência pela quarta vez, com previsão de duração até o dia 22 de agosto. Em Tóquio, a presença de público nos locais das competições foi proibida.

Crédito, Reuters

Regra que só permite que médicos e enfermeiros apliquem vacina contribuiu para atraso no programa

Imunização lenta

O país também se preparou mal para o início da vacinação, que começou atrasada na comparação com outros países desenvolvidos.

Primeiro, uma demora por parte do órgão regulador para aprovar a primeira vacina (no caso, a da Pfizer), entre outros motivos, por causa da exigência da realização de testes clínicos dentro do país — um pré-requisito que, na opinião de alguns especialistas, poderia ter sido flexibilizado. Atualmente, apenas vacinas da Pfizer e Moderna estão disponíveis.

Depois, houve atraso na importação das doses, neste caso por conta do alto nível de demanda global e da dificuldade da fabricante de fornecer o imunizante.

Finalmente, o programa de imunização por meses não conseguiu alcançar capilaridade suficiente para garantir a vacinação em massa. Apenas médicos e enfermeiros estão autorizados a aplicar o imunizante, explicam os autores. Assim, o governo teve dificuldade de contratar pessoal suficiente para administrar as doses.

Crédito, Reuters

Popularidade do primeiro-ministro Yoshihide Suga e sua equipe atingiram mínima recorde de 30%

Máquinas de fax e carimbos pessoais

O atraso no cronograma de vacinação, causado, em muitos casos, por questões que o governo poderia ter se organizado para solucionar antecipadamente, trouxe à tona um lado pouco conhecido do país entre os estrangeiros — a burocracia estatal.

“De forma geral, as coisas no Japão funcionam de maneira muito eficiente. Acho que um exemplo famoso é o dos trens, que são extremamente pontuais. As cidades são muito limpas, arrumadas… Mas há alguns fatores, particularmente a burocracia, que atrapalham os trabalhos às vezes”, diz Mark, que é australiano e mora no Japão há quase 10 anos.

Muitos processos que poderiam ter sido digitalizados ainda são feitos de forma analógica, no papel. Não por acaso, o fax segue amplamente utilizado nas repartições públicas, assim como nos escritórios e mesmo nos domicílios.

Outro símbolo do lado analógico do Japão são os carimbos pessoais, conhecidos como hanko, e que ainda são pré-requisito para liberação de alguns documentos oficiais.

“É bonito quando você olha… mas manter a necessidade de carimbar um monte de papel acaba criando uma burocracia desnecessária”, diz o professor. “Acho que esse é um exemplo de como antigas tradições e a burocracia estatal têm contribuído para atrasar as coisas”, completa.

Há anos o governo tenta digitalizar o setor público. Desta vez, o primeiro-ministro Yoshihide Suga chegou a nomear um ministro incumbido da tarefa: Hirai Takuya, que tem oficialmente o título de “ministro da transformação digital”.

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Clima em Tóquio às vésperas da cerimônia de abertura era de ‘indiferença’ e ‘decepção’, diz professor

Médicos pediram cancelamento dos Jogos

Suga assumiu como premiê em setembro 2020, após a renúncia de Shinzo Abe, seu correligionário do Partido Liberal Democrático, que também vinha recebendo uma série de críticas pela condução do combate à pandemia.

As acusações de erros e falhas no enfrentamento da crise sanitária têm custado caro ao governo, que atingiu mínima recorde de aprovação antes do início dos jogos, de cerca de 30%.

Em maio, uma importante associação de médicos que Tóquio, que reúne 6 mil profissionais, enviou uma carta aberta a Suga pedindo que a Olimpíada fosse cancelada.

“As unidades de saúde que tratam pacientes com covid-19 estão no limite e praticamente não têm como aumentar a capacidade de atendimento”, dizia o comunicado.

O temor era de que, com a chegada de atletas e delegações de todo o mundo, haveria um salto no número de infecções, sobrecarregando o sistema de saúde em uma época do ano em que tradicionalmente há maior procura, já que o intenso do verão japonês leva muita gente às unidades de saúde.

E, de fato, a cidade de Tóquio assistiu a um aumento expressivo no número de casos na última semana, tendo passado de 1,8 mil na quarta-feira (21/07), o maior valor registrado em um único dia desde janeiro.

Crédito, Getty Images

Senso de coletividade do povo japonês contribuiu para evitar piora no cenário, apesar de críticas ao governo

‘Tristeza e decepção’

Além da pandemia, uma série de controvérsias também marcou a preparação para os jogos, da acusação de plágio do logo apresentado em 2015 (que levou à sua substituição em 2016) à demissão do diretor da cerimônia de abertura um dia antes do evento por causa de uma piada sobre o Holocausto feita por ele em uma apresentação em 1998.

Cinco meses antes, comentários sexistas derrubaram o chefe do comitê olímpico do cargo. Ao responder a uma pergunta sobre o aumento de mulheres entre os membros do comitê, Yoshiro Mori disse que elas “falam demais”. Ele inicialmente se recusou a renunciar, mas o fez após pressão da opinião pública, de patrocinadores e do Comitê Olímpico Internacional (COI).

Em meio às polêmicas e diante do que se desenha como a quinta onda da pandemia de covid-19, Tóquio vive uma atmosfera que mistura, de um lado, certa indiferença e, de outro, tristeza e decepção, diz o professor Mark.

“Muita gente aqui acha que a realização dos Jogos é um risco desnecessário. Eu tive a sorte de estar na Olimpíada de Sydney em 2000 e o clima era completamente diferente — alegre, de celebração. Vamos ver se as coisas mudam aqui nas próximas semanas.”

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Fonte: BBC