• Fernanda Paúl
  • BBC News Mundo

Recorte da obra 'Mãe, Filha e Boneca'

Crédito, Boushra Almutawakel

Obra ‘Mãe, Filha e Boneca’ foi criada em 2010

Uma mãe, sua filha e uma boneca passam por uma transformação com véus muçulmanos, por meio de nove imagens, até estarem completamente cobertas por burcas e, finalmente, desaparecerem por completo.

A montagem com a série de fotos viralizou nas redes sociais desde que o Talebã retomou o poder no Afeganistão.

Criada em 2010 pela fotógrafa iemenita Boushra Almutawakel, a obra voltou a circular em meio à crise no país sob a legenda “desaparecimento”.

A repercussão surpreendeu a própria autora, considerada uma defensora dos direitos da mulher e uma pioneira no mundo muçulmano.

Crédito, Boushra Almutawakel

‘Mãe, Filha e Boneca’: imagem viralizou nas redes sociais desde que o Talebã retomou o poder no Afeganistão

“Passei de 1.500 seguidores a 20.000 em dois dias, é uma loucura”, disse ela de Dubai, onde atualmente mora com sua família, à BBC Mundo, serviço de notícias em língua espanhola da BBC.

A artista admite, contudo, ter “sentimentos contraditórios” em relação aos acontecimentos dos últimos dias.

Embora feliz com o fato de que seu trabalho esteja tendo impacto, ela acha que ele foi mal interpretado e tem sido usado como uma forma de criticar o Islã e o uso do véu (ou hijab).

Nesta entrevista, Almutawakel fala sobre a mensagem intencionada por sua obra e afirma que a “misoginia patriarcal” não é encontrada apenas no mundo árabe e muçulmano, mas “em toda parte”.

Crédito, Celine Nieszawar

Boushra Almutawakel nasceu no Iêmen em 1969

BBC Mundo – Suas fotografias, em especial a série ‘Mãe, Filha e Boneca’, foram amplamente compartilhadas nas redes sociais nos últimos dias. Qual a mensagem da obra?

Boushra Almutawakel – É um comentário sobre a misoginia patriarcal. Medo, controle e intolerância. O que será necessário para que esses extremistas aceitem as mulheres; quantas camadas serão necessárias?

A sensação é que a única coisa que os deixará felizes é que as mulheres sejam de fato invisíveis.

Eu venho do Iêmen, um país que sempre foi muito conservador. A partir dos anos 80, contudo, cresceu a influência do wahabismo, da Arábia Saudita, e eu pessoalmente senti que as coisas estavam ficando muito extremas.

E, para mim, isso não tem nada a ver com o Islã. Antes, os véus eram coloridos. Cada aldeia tinha seu próprio véu. Em algumas aldeias, as mulheres nem cobrem o rosto.

Não sou contra o hijab. Se fosse assim, teria aberto a série com uma mulher de biquíni. Mas onde está escrito que uma menina de 5 anos deve cobrir o cabelo?

É como se a cultura fosse muito mais forte do que a religião. Há muitas coisas maravilhosas em nossa cultura, mas a parte misógina, a parte extremista, de cobrir completamente as mulheres, escondê-las, usá-las como propriedade, não faz parte do Islã.

BBC Mundo – Algumas pessoas têm usado as suas fotos para criticas o Islã de forma geral. Como vê isso?

Almutawakel – É definitivamente um uso indevido e uma deturpação, porque a série “Mãe, Filha e Boneca” faz parte do meu trabalho como muçulmana, como árabe, como mulher iemenita usando o hijab.

Quando eu volto para casa (para o Iêmen), eu uso o hijab. Fui alvo de muito ódio, principalmente de mulheres árabes que me dizem que sou contra o Islã e o hijab.

E esse era o medo que eu tinha de exibir meu trabalho no Ocidente — algumas pessoas da direita usaram meu trabalho para mostrar como as mulheres islâmicas estariam sendo oprimidas.

E meu trabalho não é sobre o Islã, é sobre extremismo. É sobre a misoginia patriarcal, que não é encontrada apenas no mundo árabe e muçulmano, está em toda parte.

BBC Mundo – Você tem sentimentos contraditórios em relação à repercussão da obra?

Almutawakel – Sim. Fico feliz que as pessoas estejam vendo meu trabalho, mas estou um pouco chateada, porque é como se as pessoas estivessem usando meu trabalho para reforçar uma mensagem que elas querem passar.

Muçulmanos e árabes pensam que estou do lado do Ocidente, que sou contra o Islã. Mas isso vem do uso incorreto e deturpado da obra.

E não estou falando pelas mulheres afegãs. Elas podem falar por si próprias. Eu acredito que as pessoas devem escutar, e não falar em nome dos outros.

E é isso que acontece com o Ocidente. Sei que a intenção é positiva, mas também queremos nos salvar a nós mesmas, e temos voz. O Ocidente não pode continuar a falar por nós.

As mulheres afegãs precisam se manifestar. E tenho certeza que elas vão. Elas têm vozes, são fortes.

Crédito, Getty Images

Com a volta do Talebã ao poder, muitas mulheres decidiram deixar o Afeganistão

BBC Mundo – Qual papel então deveria ter o Ocidente em crises como a que acontece no Afeganistão?

Almutawakel – O Ocidente não precisa nos salvar. De todo modo, o Ocidente nos destruiu. O Talebã foi criado pelos Estados Unidos para que pudessem lutar contra os soviéticos.

E eles deixaram o Talebã para o povo afegão. Quem precisa deles? Que tipo de mundo é esse? Eu gostaria que o Ocidente ficasse fora de nossos países, incluindo o meu. Eles destruíram o Oriente Médio em todos os aspectos.

BBC Mundo – A possibilidade de a crise no Afeganistão aumentar ainda mais a islamofobia a preocupa?

Almutawakel – Claro que preocupa. E claro que aumenta. Mas a islamofobia existe com ou sem o Talebã, vem desde 11 de setembro de 2001.

Se não existissem os talebãs, buscariam outra coisa para alimentar essa propagando que dissemina que o Islã é o mal. Muito disso infelizmente tem a ver com ignorância, medo e incompreensão.

Crédito, Boushra Almutawakel

Em 1999, Almutawakel foi homenageada como a primeira mulher fotógrafa do Iêmen

BBC Mundo – Qual a inteção por trás da série “What if…” (“E se…”), que mostra um homem usando uma burca?

Almutawakel – Não estava tentando provocar. Enquanto estava na faculdade nos Estados Unidos, passei por uma fase religiosa e usei o hijab por um ano.

Lembro-me de quando era verão, eu sentada ali, suando, e vi os jovens árabes muçulmanos de shorts… pessoalmente, aquilo não fazia sentido para mim. Então eu tirei [o véu].

E pensei: como seria o contrário? Se os homens fossem os únicos a usar o hijab. Era uma pergunta surreal que eu queria traduzir por meio de fotos.

Lembro que expus a série no Museu Nacional do Iêmen. E, para minha grande surpresa, muitas mulheres adoraram. Acho que quase todos os homens detestaram.

Lembro-me de uma briga com um médico que estudou nos Estados Unidos. Ele me perguntava: o que você está tentando dizer? Que os homens devem ser mulheres? Você está questionando o que Deus disse? Ele levou isso muito a sério.

Crédito, Boushra Almutawakel

Série “E se…”, de Boushra Almutawakel

BBC Mundo – Você viveu por vários anos na França, um dos países que proibiu o uso da burca publicamente. Como foi a experiência?

Almutawakel – É muito contraditório. O lema da França é igualdade, liberdade e fraternidade, mas a realidade é outra.

Os muçulmanos são uma minoria, são marginalizados. E eles focam nas mulheres, as mais marginalizadas, as mais vulneráveis, é como uma forma de extremismo, mas na outra direção.

Parece horrível para mim, ainda mais horrível porque o Ocidente foi educado na modernidade, com base na liberdade e na liberdade de expressão. Mas não é verdade. Simplesmente não é verdade.

Crédito, Boushra Almutawakel

Outra composição da série ‘Hijab’

BBC Mundo – Qual sua opinião sobre o intenso debate em torno do véu?

Almutawakel – Não estamos focando nos reais problemas. Sempre se diz às mulheres o que fazer, para usar o hijab ou tirá-lo, ser magra, ser jovem… Deixem-nos em paz!

Veja o que é a indústria de maquiagem e do bem-estar. Os bilhões de dólares que circulam aí. As mulheres passam por cirurgias plásticas e morrem de fome para ficarem magras. Essa também é uma forma de opressão.

Muitas das mulheres que se cobrem são médicas, políticas, escritoras, advogadas, artistas. E elas são fortes. Não porque seu rosto ou seu corpo estejam cobertos, mas por seu intelecto.

Algumas pessoas no Ocidente veem uma mulher com véu e imediatamente presumem que ela está oprimida e precisa ser salva. Mas nem todas as mulheres que usam hijab são oprimidas. E não estou falando pelas mulheres afegãs, mas pelas iemenitas e por mim.

BBC Mundo – Você se preocupa com a supressão de direitos das mulheres pelo avanço dos talebãs no Afeganistão?

Almutawakel – Sim, claro, tenho medo como todo mundo. As coisas que aconteceram no passado, mulheres que levam tiros, que são tiradas da escola, de seus empregos, que são mortas, é horrível.

Qualquer forma de fundamentalismo, de extremismo, onde não haja espaço para flexibilidade, para discussão, para diálogo, é assustador.

No entanto, acho que estamos vivendo uma época diferente, porque agora temos telefones celulares e redes sociais, e eles não podem fazer as coisas como antes.

Também acredito que desta vez muitas mulheres lutarão mais. Tiveram 20 anos de vida melhor e são fortes, ambiciosas e capazes. Eu tenho fé nelas.

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Fonte: BBC