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Image caption Lagos assinou documento com os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Ernesto Zedillo, do México, e Juan Manuel Santos, da Colômbia, pedindo ações políticas, econômicas e éticas durante pandemia

O ex-presidente do Chile, Ricardo Lagos, ficou conhecido internacionalmente quando disse “não” à continuidade do governo do general e ditador Augusto Pinochet no plebiscito de 1988.

Anos mais tarde, Lagos foi eleito presidente, governou o país entre 2000 e 2006 e passou a faixa presidencial para sua sucessora e ex-ministra Michelle Bachelet, hoje alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Atuante na política internacional, Lagos assinou, neste mês, um documento com os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Ernesto Zedillo, do México, e Juan Manuel Santos, da Colômbia, e vários economistas, pedindo ações políticas, econômicas e éticas nestes tempos de pandemia do novo coronavírus.

Eles afirmaram que vários líderes da América Latina agiram rápido, dando prioridade à saúde pública. Mas que outros, “infelizmente”, minimizaram os riscos da pandemia, não informaram aos cidadãos sobre sua gravidade e ignoraram evidências científicas.

Tais líderes, disseram, “optaram por políticas populistas em meio à tragédia”. No documento, eles também pediram mais recursos para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e que o Fundo Monetário Internacional (FMI) gere facilidades financeiras para a América Latina.

Nesta entrevista à BBC News Brasil, falando de Santiago, no Chile, o ex-presidente Lagos disse que o populismo é um perigo porque “no longo prazo termina no mandato de uma pessoa só e isso não serve para a democracia”.

Na sua visão, é triste ver líderes políticos que dizem não acreditar na Ciência. “Não se pode fazer política como se a Ciência não existisse. Fico surpreso que existam líderes que não se interessem, que não queiram ler e aprender. E agora vemos o que está acontecendo (com os efeitos da pandemia)”.

A seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – Em sua conta no Twitter, o senhor disse que essa é a pior crise em 100 anos e que o vírus conviverá muito tempo com as pessoas, mudando o mundo para sempre. Mas o que muda na política e no exercício do poder?

Ricardo Lagos – As regras do passado de que o líder fala, o partido manda e a cada quatro anos fazemos uma eleição. Mas entre os quatro anos a cidadania exige ser ouvida. Antes, a política era verticalizada. E isso mudou com as redes sociais. Mas, depois da pandemia, boa parte das ideias da época pré-globalização mundial vão mudar.

Qual será a relação entre a Ciência e a política? Será que um líder vai poder dizer que a Ciência está errada? Vamos supor que um líder diga que a pandemia não existe, mas aí vemos a realidade agora.

O discurso de America First (do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump), por exemplo. As pessoas agora podem dizer: ‘O senhor não disse que estava tudo sob controle?’ Não, não estava sob controle.

BBC News Brasil – O senhor citou o presidente Trump ao dizer ‘America First’ e diz que ele não acreditou muito na Ciência. No Brasil, o governo Bolsonaro também questiona a Organização Mundial da Saúde (OMS). O chanceler do Brasil, Ernesto Araújo, divulgou um texto no seu blog pessoal associando a OMS aos comunistas. (Araújo falou em ‘comunavírus’). Como o senhor vê essa discussão?

Lagos – Uma discussão que não faz sentido. Não se pode fazer política como se a Ciência não existisse. A OMS emitiu no ano passado um relatório em que dizia que existia cenário para uma futura pandemia. Quando a gente lê o relatório vê que é o que está acontecendo agora. Não sabíamos que seria um vírus da covid-19, mas se sabia que uma pandemia viria. Temos que levar isso a sério.

Também existem os que negam a existência da mudança climática. E dizem que sabem mais que os outros. Mas não sabem nada. São negações. Mas estamos vendo como as geleiras caem, como as Cordilheiras dos Andes tem menos neve, estamos vendo uma seca que avança no Chile.

É uma realidade. Cada um diz o que quiser, mas o que digo é baseado na Ciência. Fico surpreso que existam líderes políticos que não se interessem, que não queiram ler e aprender. E agora vemos o que está acontecendo. Leio na imprensa que dentro do próprio governo de Bolsonaro há pessoas que não pensam como ele.

Direito de imagem Alan Santos/PR
Image caption Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores do Brasil, divulgou texto em que associa a OMS ao comunismo

BBC News Brasil – O ministro da Saúde saiu e na sexta-feira (24) saiu o ministro da Justiça…

Lagos – A saída do ministro da Justiça mostra que alguma coisa não funciona bem.

BBC News Brasil – O senhor acha, então, que instituições como a OMS são ainda mais importante do que se pensava?

Lagos – Vamos voltar um pouco na História. Depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial, se pensou que poderia existir uma casa de todos que é a Assembleia das Nações Unidas para ali ser discutida a governança mundial. Todos os países são iguais. Naqueles tempos, a ONU foi fundada com 51 países.

E a América Latina tinha 21 (desses) países. Éramos mais importantes. Mas depois surgiu um conjunto de entidades. E a OMS é a instituição encarregada dos assuntos de saúde. Você pode ler ou não os relatórios, mas são elementos que contribuem para um debate inteligente. É a primeira vez que escuto dizerem que são senhores de determinada ideologia (comunistas), sinceramente.

Essas são as pessoas que dizem ‘não acredito na Ciência’, mas as consequências são muito graves para o mundo. Acho que no mundo moderno temos que acreditar na Ciência e nos avanços que existem.

BBC News Brasil – Como o senhor vê o debate sobre o comunismo? Existe o retorno do comunismo?

Lagos – Acho que um dos assuntos importantes, depois da queda do Muro de Berlim (1989), e quando o mundo disse acabou a Guerra Fria (1947-1991), é o fracasso daquilo (do comunismo). Então, as pessoas podem ter diferentes linhas políticas, mas acho que essa pandemia mostra que nós, seres humanos, temos que ser mais humildes porque não sabíamos que um vírus aconteceria.

E quem vai poder ignorar isso? Vamos ter que viver com esse vírus até que a vacina seja criada para os que estão saudáveis e os remédios para os que estão doentes.

BBC News Brasil – Como o senhor vê a questão das liberdades individuais? Não estão em risco? Na China estão acompanhando as pessoas por seus celulares para tentar monitorar o avanço do novo coronavírus. De alguma forma aqui também na Argentina e no Brasil está sendo feita medida parecida ou existe o debate sobre isso, como no Chile também. Além de estradas controladas e de fronteiras fechadas. Isto não limita as liberdades individuais?

Lagos – Claro que limita. Mas quem é o único que em tempos democráticos pode limitar as liberdades? São as instituições democráticas. Não é um ditador que anda por aí. É o Estado que determina. O Estado é a nação juridicamente organizada. O Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário.

Quem pode limitar as liberdades em função de um interesse maior? Não queremos que todos nos contagiemos. Agora existe temor de que com essas novas tecnologias invadam nossa liberdade. É verdade e é muito perigoso. Mas tão importante quanto ouvir a Ciência é também enfrentar as fake news.

As fake news destroem os sistemas democráticos. Quem divulga as fake news? Essa é uma pergunta muito importante. E todos estamos vendo que estamos diante de um desafio imenso e novo. No Chile, por exemplo, temos um sistema de saúde público e um sistema de saúde privado. Vinte por cento têm o sistema privado e pagam por isso. Oitenta por cento têm o sistema público.

O governo atual, do presidente Sebastián Piñera, que poderíamos chamar de direita, decretou que a partir de agora o controle de todos os leitos, públicos ou privados, está com o Ministério de Saúde.

BBC News Brasil – O senhor acha que essa medida é positiva?

Lagos – Claro que sim. Existe algo muito mais importante do que tudo hoje. É preciso ter leito para todo mundo. A administração dos leitos é uma urgência especial. E ninguém protestou contra essa medida.

BBC News Brasil – Na Argentina, o presidente Alberto Fernández contou com o apoio da oposição para implementar a quarentena iniciada em 20 de março. No entanto, no Brasil, existem posturas diferentes entre o presidente, que critica as orientações da OMS, e governadores. Qual a sua visão?

Lagos – Acho que é normal. Olha o que está acontecendo nos Estados Unidos. Os governadores exigindo que as pessoas fiquem em quarentena e o presidente Trump dizendo que não. Argentina, Estados Unidos e Brasil são sistemas federais, onde os governadores são eleitos.

No Chile, não. É um sistema presidencial, no qual os governadores são nomeados pelo presidente. Mas acho que o principal neste momento é que ocorra uma confluência de vontades.

Nos Estados Unidos, como no Brasil, presidente e governadores têm o mandato da eleição popular. Portanto, o natural é que o presidente busque os consensos, como fez o presidente argentino.

BBC News Brasil – No Brasil, no domingo (19) foi realizada uma manifestação em Brasília pedindo intervenção militar, com o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente Bolsonaro participou do ato. No dia seguinte, buscou pedir desculpas, frente a reação contrária à sua postura, mas, ao mesmo tempo, disse “eu sou a Constituição”. Qual é a sua opinião?

Direito de imagem EVARISTO SA/AFP e Getty Images
Image caption No último dia 19, Bolsonaro participou de uma manifestação a favor de um novo golpe militar no Brasil

Lagos – É difícil opinar de fora. Sou um ex-presidente. Mas o que esperaria é que exista um consenso, um acordo porque este vírus não respeita ideologias políticas. Esse vírus entra em todos os lados e sem pedir licença. Esse vírus está mudando a forma como vamos entender a política no futuro.

BBC News Brasil – Como? De que forma?

Lagos – O consenso deverá ser a forma para enfrentar vários assuntos. Não será mais a discórdia diante de determinados assuntos. Diante de uma pandemia desse tamanho, quais são as medidas que devem ser adotadas? E quem define estas medidas? Os especialistas, os que sabem como trabalhar nesta pandemia.

BBC News Brasil – O que o senhor quer dizer é que a vida é mais importante do que as diferenças políticas e o debate direita ou esquerda? Como fica a política atual?

Lagos – Eu gostei do argumento do líder da oposição de Portugal. Lá, o presidente (Marcelo Rebelo de Sousa) é de centro-direita e o primeiro-ministro (António Costa), que é socialista, tem apoio dos comunistas. Houve um debate no Parlamento e o primeiro-ministro explicou o que está sendo feito.

E depois falou o presidente do partido opositor, de centro-direita. E o opositor disse: ‘não aceito que digam que sou opositor em relação a este assunto. Eu colaboro com o governo porque neste assunto todos estamos juntos’. Acho que nós, latino-americanos, deveríamos aprender isso. Que diante dessa crise não existe governo ou oposição.

BBC News Brasil – Mas o que acontece, na sua visão, com os populismos na América Latina em meio à pandemia?

Lagos – Acho que o populismo é uma forma de caminhar mais rápido, pulando os procedimentos democráticos. E isso é um erro enorme. O populismo não vai resolver os assuntos. As mudanças devem ser graduais. Estamos numa época na qual as receitas de ontem já não servem hoje.

Por exemplo, o trabalho à distância vai sair fortalecido dessa pandemia. E as compras online também. Mas qual será o futuro dos shoppings? Muitas ideias são da época em que se trabalhava na indústria e havia um sindicato. Mas agora com o home office, onde serão as reuniões para fazermos a greve?

São assuntos muito profundos que estão mudando. Por isso, é muito importante prestar atenção no que a Ciência está dizendo. É triste ver líderes políticos que dizem ‘eu, líder político, estou acima da Ciência’. Não, não é isso. É preciso pensar assim, ‘a Ciência está ao meu serviço e preciso ouvi-la’.

BBC News Brasil – O senhor ganhou maior destaque na política, no passado, quando disse ‘não’ no plebiscito sobre a continuidade de Augusto Pinochet (ditadura de 1974-1990). De lá para cá, a América Latina mudou muito. Mas o senhor vê algo tipo de risco da volta da ditadura? E qual a sua opinião sobre o governo Maduro na Venezuela? E qual a sua opinião sobre o governo Bolsonaro que tem vários militares?

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Image caption A ditadura de Augusto Pinochet durou de 1973 até 1990

Lagos – Primeiro, temos que fortalecer nossos sistemas democráticos. Sei o que é uma ditadura e enfrentei uma ditadura. E a derrotamos, junto com toda a coalizão que foi feita, através de um procedimento que estava na Constituição de Pinochet.

Quando chegou a hora do plebiscito, o derrotamos. E em boa hora. Agora, porém, acho muito importante entender que o sistema democrático é o único sistema que defende os direitos humanos. No longo prazo, o populismo termina no mandato de uma só pessoa. E isso não serve para a democracia.

BBC News Brasil – O senhor está se referindo à Venezuela e ao Brasil?

Lagos – Acho que no caso da Venezuela, quando a Venezuela decidiu ignorar o resultado da (eleição para a) Assembleia Nacional (vencida pela oposição), o governo de Maduro perdeu legitimidade. E isso, infelizmente, já faz mais de seis anos e continuamos sem resolver o assunto.

BBC News Brasil – No caso do Brasil, que é um governo com muitos militares e com um presidente que é ex-capitão que foi eleito…

Lagos – Não posso comentar o que deve fazer o presidente do Brasil, o país que gosto tanto e que é tão importante. Não digo isso nem no Chile.

BBC News Brasil – Na sua opinião, existe ou não um conflito entre cuidar da saúde e cuidar da economia? Porque o desemprego está aumentando, comércios estão fechados…

Lagos – Claro que existe um conflito evidente. Governar é sabedoria.

BBC News Brasil – Como?

Lagos – Dar recursos para quem está desempregado. E que, antes de mais nada, tenha o que comer. E, segundo, manter a economia funcionando.

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Fonte: BBC