MADRI, ESPANHA (FOLHAPRESS) – Um relatório publicado na terça-feira (23) pelo Centro Comum de Investigação da Comissão Europeia aponta que quase metade (47%) do território do bloco está sob condições de alerta de seca. O verão europeu se caracteriza como um dos mais secos dos quais se tem registro, e países como Itália, França, Alemanha e Noruega estão em vigilância diante do que pesquisadores apontam como consequências das mudanças climáticas.

“A Europa foi a região onde o aumento de temperatura foi mais alto e mais rápido nos últimos 30 anos”, diz o climatologista José Álvaro Pimpão Silva, da Organização Meteorológica Mundial da ONU (OMM).

Envolvido na produção de relatórios anuais da entidade sobre o clima e seus extremos, Silva alerta que o pior ainda pode estar por vir: “A probabilidade de um dos anos no período até 2026 vir a ser o mais quente é muito elevada, estimada em 93%.”

Nascido em Portugal, onde trabalhou durante 20 anos no Instituto Português do Mar e da Atmosfera, Silva conta à Folha as boas -as mortes têm diminuído- e as más notícias a respeito da crise climática -perdas econômicas estão aumentando.

PERGUNTA – Em 2022 e nos últimos anos, países europeus têm registrado recordes de temperatura, de seca e de incêndios. Por quê?

JOSÉ ÁLVARO PIMPÃO SILVA – A Europa foi a região onde o aumento de temperatura foi mais alto e mais rápido nos últimos 30 anos. A frequência de eventos climáticos extremos tem aumentado no contexto de mudança climática, e a contribuição humana para o aquecimento global tem levado a que a ocorrência destes fenômenos seja muito mais provável atualmente.

P. – Mais provável?

SJ – Sim. Por exemplo: demonstraram que o evento de calor extremo que originou o recorde de temperatura no Reino Unido, 40,3°C em 19 de julho de 2022, foi pelo menos 10 vezes mais provável do que se estivéssemos num mundo cerca de 1,2°C menos quente.

P. – A Europa vai esquentar mais?

JS – O ritmo de aumento da temperatura global é crescente, e cada uma das últimas quatro décadas foi mais quente que a anterior. Para além disso, a probabilidade de um dos anos no período de 2022-2026 vir a ser o mais quente é muito elevada, estimada em 93%.

P. – Europa tem sofrido mais do que o resto do mundo?

JS – Não diria que a Europa sofre mais. A crise climática afeta de forma mais acutilante as populações mais desfavorecidas, e as maiores perdas humanas acontecem nos países em desenvolvimento.

P. – As mortes têm aumentado?

JS – De acordo com estudo da OMM, reportando ao período 1970-2019, há uma tendência decrescente no número de mortes a nível global. Na última década, foi menos de um terço das reportadas nos anos 1970 ou 1980. Esta redução é ainda mais significativa porque o número de desastres
climáticos mais do que triplicou, de 711 em 1970-1979 para 3.165 em 2010-2019.

P. – Por que?

JS – Essa redução tem sido atribuída aos avanços dos sistemas de alerta precoce. Por outro lado, as perdas econômicas têm vindo a aumentar. O calor extremo, do ponto de vista de vítimas, e as inundações, do ponto de vista de danos econômicos, destacam-se como os fenômenos mais devastadores na Europa.

P. – Como acha que a Europa deve se preparar?

JS – É importante compreender que há limites para a adaptação. Limitar o aquecimento global a 1,5°C, conforme estabelecido no Acordo de Paris, não é apenas um mero número. Ainda que a adaptação possa desempenhar um papel importante, na antecipação e redução do risco, o papel principal na redução de futuras consequências e impactos está muito dependente da mitigação e de efetiva redução de emissões de gases com efeito de estufa a nível global.

Não é possível antecipar, com meses de antecedência, o local, data e intensidade de um determinado fenômeno extremo. Sabe-se, no entanto, que estes são cada vez mais prováveis e intensos num contexto de mudança climática. Por exemplo: por cada grau de aumento de temperatura a nível global, os eventos de chuva extrema intensificam-se cerca de mais 7%.

P. – Que alertas essa crise envia para o Hemisfério Sul, para o Brasil?

JS – Recentemente foi publicado o Relatório da OMM sobre o Estado de Clima na América Latina e Caribe em 2021, em que foram salientados alguns tópicos de relevância para a América do Sul, incluindo a seca no Chile e na bacia do Paraná, a diminuição dos glaciares nos Andes, os eventos de chuvas intensas e inundações em partes do Brasil e o aumento do desmatamento na Amazônia Brasileira, que atingiu em 2021 o valor mais elevado desde 2009, cerca do dobro da média 2009-2018.

Como saber que isto é causado por uma mudança climática histórica, e não apenas consequência de alguns anos mais quentes? Estamos absolutamente fora do domínio da variabilidade natural do clima. A influência do homem para o aquecimento da superfície terrestre é incomparavelmente maior que qualquer causa natural. A concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera é a mais alta em pelo menos 2 milhões de anos no que diz respeito ao dióxido de carbono e dos últimos 800 mil anos no que diz respeito ao metano e ao óxido nitroso.

P. – E quanto aos oceanos?

JS – O calor acumulado no oceano é um dos melhores indicadores da mudança climática e, mesmo parando as emissões de gases com efeito estufa, essa alteração será irreversível por vários séculos a milênios. Um oceano mais quente expande-se, contribuindo para a subida do nível médio do mar. O gelo no Ártico apresenta os menores valores em pelo menos 1.000 anos. Nos últimos 40 anos, a diminuição foi de cerca de 40%.

P. – Já tentou convencer um negacionista de que o aquecimento global é uma realidade?

JS – Sim, já. Algumas vezes com sucesso. A melhor forma é com a ciência, expondo todos os fatos e argumentos que as últimas décadas trouxeram na compreensão e explicação do efeito da influência humana no aquecimento do clima. Além disso, os jovens estão cada vez mais despertos para a crise climática que
atravessamos. Eles são importantes educadores e comunicadores, contribuindo para combater a desinformação.

P. – Em que situação o planeta estaria hoje se não existisse a civilização humana?

JS – O que posso transmitir é que, com a civilização humana pós-revolução industrial, a Terra não está bem. A temperatura média global está cerca de 1,1°C acima dos valores pré-industriais, sendo a anomalia ainda mais alta sobre os continentes. Os últimos sete anos foram os mais quentes de que há registro e, em 2021, quatro indicadores-chave do sistema climático atingiram novos valores recorde: a concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera, o aumento do nível médio do mar, o conteúdo calorífico do oceano e a acidificação do oceano. A emergência climática foi causada pelo homem e tem de ser resolvida pelo homem.

Raio-X

José Álvaro Pimpão Silva, 44

Com formação em geografia e climatologia, trabalhou por cerca de 20 anos no Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Hoje, atua na Organização Meteorológica Mundial da ONU (OMM), onde colabora na elaboração de relatórios anuais sobre o clima e seus extremos no planeta.