SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Considerado um dos países mais instáveis do mundo, o Sudão tem histórico extenso de conflitos armados e disputas de militares pelo poder. Novos combates explodiram nos últimos dias, provocando a morte de ao menos 550 pessoas e alimentando o temor de uma crise humanitária sem precedentes em toda a região.

Os confrontos começaram no último dia 15 entre as forças do Exército regular, lideradas pelo general Fatah al-Burhan, e do grupo paramilitar RSF (Forças de Apoio Rápido, em português), comandado pelo também general Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti.

Juntos, eles derrubaram em 2019 a ditadura de 30 anos de Omar al Bashir. Dois anos depois, participaram de um golpe de Estado que encerrou a transição para um regime democrático. No comando do país, os generais passaram a divergir sobre a participação dos paramilitares no Exército e sobre a formação de um novo governo, alimentando rumores sobre confrontos armados que se concretizaram em abril.

Os combates no Sudão são resquícios da era colonial que militarizou e dividiu o país, segundo Lucas de Oliveira Ramos, especialista em dinâmicas de segurança na África e doutorando em relações internacionais.
Conheça mais sobre a história do Sudão a seguir.

COMO FOI O PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DO PAÍS?

Localizado no nordeste da África, o Sudão foi colônia do Reino Unido e do vizinho Egito num arranjo considerado raro chamado de “condomínio”, estabelecido em 1899. Na prática, os europeus controlavam a área sudanesa de forma indireta, apoiando reis egípcios que administravam o território.

No período, a população do norte sudanês recebia armas da coroa britânica em troca de recursos naturais, segundo Lucas Ramos. O processo deu início à formação das elites sudanesas, à época já militarizadas e patrimonialistas.

POR QUE O NORTE SE DESENVOLVEU MAIS QUE O SUL?

Também a desigualdade é legado do período colonial. De acordo com Ramos, a coroa britânica financiou grupos sedentários estabelecidos ao norte, nas margens do rio Nilo, que sobreviviam da atividade pastoril.

Ao sul, os grupos eram nômades e não receberam recursos. “Na época da colonização, era comum a metrópole escolher um grupo para atuar como intermediário entre a coroa e a população local”, afirma.

O resultado foi a segregação do sul, que recebeu investimentos inexpressivos e teve pouca participação política, o que estimulou a insatisfação da população local. A concentração da elite em Cartum, a atual capital do Sudão, aprofundou as diferenças regionais.

COMO O SUDÃO CONQUISTOU A INDEPENDÊNCIA?

O Sudão se tornou independente em 1956 como consequência da Segunda Guerra Mundial. Enfraquecidos economicamente em função do conflito, países europeus destinaram menos recursos às colônias e foram aos poucos perdendo o controle sobre os territórios.

A participação de tropas sudanesas ao lado dos aliados na Segunda Guerra acelerou o processo de emancipação como parte do reconhecimento pelos esforços na luta, diz o professor Alexandre Dos Santos, de política e história do continente africano no Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ.

Mas o processo não foi pacífico. Houve conflitos entre forças da metrópole e rebeldes influenciados por Maomé Amade (1844 – 1885), que liderou uma guerra anticolonial contra o domínio militar otomano e egípcio no século 19.

QUAL É A FORMA DE GOVERNO DO SUDÃO?

Oficialmente, a forma de governo vigente no Sudão é o presidencialismo. Mas, desde a independência, o país tem sido dominado por ditadores e líderes autocráticos acusados de cometerem violações contra os direitos humanos.
Quem se manteve mais tempo no poder foi o ditador Omar al-Bashir. Ele liderou um golpe militar contra um governo eleito em 1989. Foi deposto 30 anos depois pelas Forças Armadas, que instituíram um governo de transição para a democracia.

“A política do Sudão é pendular. Está sempre alternando revoluções populares que derrubam ditadores e golpes de militares que dão jeito de voltar ao poder”, diz Santos.

Em 2021, um golpe militar com a justificativa de restaurar a ordem encerrou a transição para o regime democrático instalado após o regime de al-Bashir. Já os confrontos iniciados no mês passado caracterizam uma tentativa de golpe dentro do golpe.

QUANTAS GUERRAS CIVIS O SUDÃO JÁ TEVE?

O Sudão teve duas longas guerras civis, com confrontos entre forças do norte do país e do sul.

A primeira começou em 1955, quando líderes do sul exigiram maior autonomia regional. De acordo com Santos, no processo de transição para a independência, em 1956, a coroa britânica não considerou a divisão política no país africano, negociando apenas com representantes do norte, o que gerou revolta.

O acordo que pôs fim aos combates em 1972 fracassou, levando à explosão de um novo conflito norte-sul de 1983 a 2005. Esse conflito é considerada um dos mais mortais do final do século 20. Estimativas apontam de 1 milhão a 2,5 milhões de pessoas mortas, sendo a maioria civis.

O SUDÃO TEM CONFLITOS ÉTNICOS OU RELIGIOSOS?

Sim. A Segunda Guerra Civil Sudanesa (1983 – 2005), por exemplo, começou quando o governo muçulmano do norte tentou impor a sharia, a lei tradicional islâmica, em todo o país, inclusive no sul, onde os cristãos estão concentrados.

Os confrontos entre as duas partes quase sempre são justificados como consequência das diferenças étnicas e religiosas no Sudão, sendo o sul predominantemente cristão e o norte, muçulmano. Especialistas, ponderam, porém, que é preciso levar em consideração as desigualdades sociais e econômicas.

QUANDO O SUDÃO FOI DIVIDIDO?

Depois de longos períodos de guerra civil, o Sudão do Sul se tornou um país em 2011, após a população votar em referendo pela independência do território. Desde então, a nação africana vem enfrentando diversos problemas relacionados à infraestrutura e administração -hoje é um dos Estados mais pobres do mundo. Também depende de recursos e tecnologia do vizinho ao norte.

QUAL É A RELAÇÃO DA HISTÓRIA DO SUDÃO COM O CONFLITO ATUAL?

O conflito atual é resultado de uma sociedade militarizada, violenta e dividida. As Forças de Apoio Rápido nasceram em um embate na região sul do país. O grupo paramilitar tem origem nas chamadas milícias janjaweed, acusadas de terem cometido atrocidades na região de Darfur nos anos 2000. À época, soldados foram convocados pelo então ditador, Omar al-Bashir, a reprimir uma rebelião liderada por povos não árabes. Estima-se que 300 mil pessoas foram mortas no conflito.

Com o passar do tempo, o grupo cresceu e passou a ser usado como guarda de fronteira, principalmente para reprimir a migração irregular. Em 2017, foi aprovada uma lei que legitima o grupo paramilitar como força de segurança independente. Depois, em 2019, após a destituição do ditador, o general Hemedti assinou um acordo de compartilhamento de poder que o tornava o número dois no comando do Sudão.

O número um é o general al-Burhan, que controla o Exército sudanês.

QUAL É A SITUAÇÃO ATUAL DO CONFLITO?

Desde o início dos combates, ataques aéreos e de artilharia mataram ao menos 550 pessoas e feriram quase 4.900 até esta quinta (4). As ofensivas também destruíram hospitais e limitaram a distribuição de alimentos -um terço da população de 46 milhões de pessoas já dependia de ajuda humanitária.

A Organização Mundial da Saúde disse na semana passada que apenas 16% das instalações de saúde estavam funcionando em Cartum e projetou “muito mais mortes” devido a doenças e à escassez de alimentos, água e serviços médicos. Estima-se que 50 mil crianças com desnutrição aguda tiveram o tratamento interrompido, e os hospitais que ainda funcionam enfrentam falta de suprimentos, energia e água.

QUANTOS BRASILEIROS ESTÃO NO SUDÃO?

O Itamaraty informou, em nota enviada à Folha de S.Paulo na terça (2), que 24 dos 27 brasileiros que estavam no Sudão já deixaram o território; os demais foram transferidos para áreas de menor risco relativo e aguardam oportunidades de também deixarem o país.

Já a rede chinesa CCTV noticiou que o navio Weishanhu, da Marinha do Exército de Libertação Popular, levou seis brasileiros do Sudão para o porto de Jeddah, na Arábia Saudita, no final da semana.

Questionado sobre a operação, o Itamaraty informou que conta com a cooperação de diferentes parceiros internacionais, entre os quais a ONU, a Espanha, a Suécia, a França, a China e a Arábia Saudita.