SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Conhecida por expor abusos cometidos na era stalinista, a ONG russa Memorial recebeu a notícia de que ganhou o prêmio Nobel da Paz nesta sexta (7) com certa ambivalência.

Parte da organização sente que não conseguiu impedir a maior catástrofe de todas, a Guerra da Ucrânia, conta a advogada Natália Sekretareva, 30, que chefia a área jurídica do ramo da ONG dedicado à defesa dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, o prêmio tem uma importância simbólica em termos de visibilidade, já que, segundo ela, a luta pela causa é, muitas vezes, silenciosa.

Sekretareva ainda traça um paralelo entre a Rússia cada vez mais autoritária de hoje e o Brasil, prestes a eleger seu próximo presidente.

“Direitos são facilmente retirados, mas não [facilmente] concedidos”, diz ela. “[Jair] Bolsonaro é feito do mesmo material que Putin ou [do ditador belarusso Aleksandr] Lukachenko. A sociedade russa foi ensinada a se esquivar da política, correr para a esfera privada. Mas os brasileiros ainda podem evitar que o país não se torne uma Rússia número dois na América do Sul.”

A entidade foi fechada em 2021 por uma decisão da Suprema Corte da Rússia, após anos sendo perseguida pelo governo de Vladimir Putin –ainda que o Judiciário russo seja nominalmente independente, na prática ele é alinhado ao Kremlin.

Um novo movimento com o mesmo nome foi então criado em junho, mas sem um registro formal de ONG, um recurso para tentar escapar da perseguição. Uma das bases do argumento usado pela procuradoria ao pedir a dissolução do Memorial era de que o grupo infringia sistematicamente as obrigações de sua condição de “agente estrangeiro”, rótulo atribuído a organizações que recebem financiamento do exterior e se engajam em atividades consideradas políticas.

Sekretareva diz que a nova Memorial reúne algumas dezenas de membros, sendo que o conselho principal, responsável pela tomada de decisões e o qual ela integra, é formado por nove pessoas. Muitos dos ativistas continuam na Rússia, por vezes trabalhando anonimamente.

Outros, como ela mesma, saíram do país –a ativista se mudou para São Paulo em março, logo após o início da Guerra da Ucrânia, que a Rússia ainda chama de “operação militar especial” depois de sete meses de conflito.

A ONG tem duas frentes de atuação. Uma é dedicada a documentar e salvaguardar a memória da repressão política durante os anos soviéticos. A outra, que Sekretareva integra, é centrada na defesa dos direitos humanos e é subdividida em uma série de times, responsáveis por lidar por exemplo com relatos de sequestro e desaparecimento de pessoas.

Sekretareva afirma que um dos principais esforços da organização nos últimos tempos tem sido o auxílio a refugiados ucranianos na Rússia –muitas vezes, o território de Moscou é a única via de saída para moradores do país invadido.

Ela diz que a organização também está prestes a se unir a outra entidade para orientar a população em questões relacionadas à convocação militar obrigatória recentemente ordenada por Putin, a primeira do tipo desde o início da Segunda Guerra Mundial.

Questionada sobre como a Memorial vê a situação da Rússia hoje, a ativista afirma que há um misto de medo e de frustração. “Há uma percepção de que os tempos são sombrios, e que continuarão assim. Mas aqueles que decidiram continuar na organização também são os que acreditam que os tempos podem ser melhores”, diz a advogada, acrescentando que há pessoas que literalmente deram sua vida por ela.

Ela cita a ativista Natália Estemirova, funcionária do centro de direitos humanos da organização na Tchetchênia que foi sequestrada e assassinada em 2009, em um crime até hoje não solucionado.