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Image caption Pinochet protagonizou o golpe militar e a ditadura sangrenta que durou quase 17 anos no Chile, matando mais de três mil pessoas no país. Mas é uma figura que divide profundamente os chilenos

A visita do presidente Jair Bolsonaro (PSL) ao Chile, com as reverências que já fez ao general e ex-ditador Augusto Pinochet, cutuca feridas de um passado dolorido, mexendo com traumas de uma ditadura que o país se esforça há 29 anos para superar.

A garantia oferecida por Bolsonaro ao chegar a Santiago responde a um dos pontos mais sensíveis atiçados por sua chegada: “Não vim aqui falar sobre Pinochet. Tem muita gente que gosta dele, gente que não gosta”, disse a repórteres no aeroporto, na quinta-feira.

Pinochet protagonizou o golpe militar e a ditadura sangrenta que durou quase 17 anos no Chile, entre 1973 e 1990, matando mais de três mil pessoas no país. Mas é uma figura que divide profundamente os chilenos. Quando o general morreu, em 2006, cerca de 60 mil pessoas foram se despedir diante de seu caixão.

Ao longo de sua trajetória como deputado federal, assim como fez com o regime militar brasileiro, Bolsonaro defendeu o governo de Pinochet em diversas ocasiões, afirmando, em pronunciamentos ou entrevistas, que o ex-ditador “fez o que tinha que ser feito” ou que “devia ter matado mais gente”. “Tinha que agir de forma violenta para recuperar o país”, argumentou em uma entrevista em 2015.

O posicionamento foi reverberado em falas recentes de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que em dezembro visitou o Chile e declarou que Pinochet havia sido responsável por impedir que o país “se convertesse numa nova Cuba”; e pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

No dia da chegada do presidente ao país, Lorenzoni afirmou, em entrevista à Rádio Gaúcha, que “o Chile teve de dar um banho de sangue” no período Pinochet. “Triste, o sangue lavou as ruas do Chile, mas já passaram oito governos de esquerda e nenhum mexeu nas bases macroeconômicas colocadas no Chile no governo Pinochet”, afirmou.

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Image caption ‘Não vim aqui falar sobre Pinochet. Tem muita gente que gosta dele, gente que não gosta’, disse o presidente a repórteres no aeroporto, na quinta-feira

Boicote a encontro

As declarações de Lorenzoni revoltaram os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados do Chile. O presidente da Câmara, Ivan Flores, disse ao jornal O Globo que as falas eram um “desatino sem paralelo” e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet – engrossando as manifestações de resistência à chegada do presidente brasileiro.

Os presidentes das duas casas legislativas já haviam anunciado a recusa em participar do almoço para recepcionar Bolsonaro que será oferecido pelo presidente de centro-direita do Chile, Sebastián Piñera, no palácio presidencial, La Moneda. A solenidade no sábado tem 90 convidados.

Deputados da oposição apresentaram uma moção pedindo que Piñera declarasse Bolsonaro persona non grata por seus “claros incentivos à discriminação de classe, de gênero e de orientação sexual”, “por não defender a democracia e endossar a tortura” e “pela incitação ao ódio e a violações de direitos humanos”, nas palavras de parlamentares da oposição.

Movimentos sociais, estudantis e grupos de esquerda convocaram protestos contra Bolsonaro para esta sexta-feira.

Quem foi Pinochet?

Augusto Pinochet liderou o golpe que derrubou o presidente Salvador Allende e o chamado governo da Unidade Popular, eleito democraticamente, em 11 de setembro de 1973, com apoio dos Estados Unidos.

Instaurou uma ditadura militar que durou até março de 1990, mantendo-se como homem forte do país durante todo o período.

Na ditadura chilena, 3.065 militantes, lideranças de esquerda e intelectuais foram assassinados pelo Estado, e quase 40 mil foram torturados, de acordo com relatórios produzidos por comissões da verdade após o fim do regime.

Pinochet é visto como uma figura nefasta por muitos chilenos, imagem que se consolidou internacionalmente devido aos milhares de crimes ocorridos sob a ditadura.

Mas conta até hoje com simpatizantes nos segmentos mais conservadores do país, que veem o golpe de 1973 como um freio ao socialismo – e suas medidas econômicas como base para o Chile ter hoje o maior PIB per capita na América do Sul, e manter um nível de crescimento robusto (o PIB cresceu 4% em 2018, contra 1% no Brasil).

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Image caption Na ditadura chilena, 3.065 militantes, lideranças de esquerda e intelectuais foram assassinados, e quase 40 mil foram torturados

Pinochet promoveu privatizações, abriu o mercado e promoveu políticas baseadas na cartilha neoliberal da chamada Escola de Chicago, onde estudaram diversos membros de sua equipe econômica. Os “Chicago Boys” da ditadura inspiram a admiração dos Bolsonaros – “Agora nós também temos o nosso Chicago Boy”, gabou-se Eduardo recentemente, referindo-se ao Ministro da Economia, Paulo Guedes.

“Pinochet ainda tem muitos seguidores, mas tem muitos detratores”, diz o cientista político chileno Raul Elgueta, professor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago do Chile. “Em todo caso, hoje existe um consenso no Chile em torno da condenação à violação dos direitos humanos”, destaca.

Para a historiadora Elisa Borges, é preciso olhar para o governo de Salvador Allende, estabelecido como uma coalizão entre os partidos Comunista e Socialista, para entender a controvérsia.

“A propaganda política da ditadura fez uma contraposição muito forte com o período anterior, negando qualquer tipo de visão positiva do governo Allende. A ditadura se vendeu como tendo salvado o país do comunismo, apresentando o neoliberalismo e o próprio Estado autoritário como uma medida necessária para enfrentar o comunismo no país”, afirma Borges, professora de História da América Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela ressalta que na época não havia liberdade de imprensa nem espaço para o contraditório.

“Essa é uma imagem da ditadura que muitos chilenos sustentam até hoje, a de que Pinochet salvou a economia e era a única saída contra o comunismo”, diz Borges, pesquisadora da História chilena.

Detenção em Londres

Enquanto o Brasil publicava sua nova “Constituição Cidadã”, em 1988, Pinochet, sob crescente oposição interna e externa, convocou um plebiscito para que a população decidisse se poderia concorrer a um novo mandato. A vitória do “não” o pegou de surpresa, e em março de 1990 entregou o cargo ao primeiro presidente que os chilenos puderam eleger desde 1970, Patricio Aylwin.

Mesmo após o fim da ditadura, o general se manteve em posições de poder por quase uma década. Ocupou o cargo mais alto nas Forças Armadas até 1998, e permaneceu intocável à Justiça apesar dos esforços da Comissão Rettig, montada no início do governo Aylwin para revelar as violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura. Em 1998, assumiu o posto de senador vitalício.

No mesmo ano, entretanto, em viagem a Londres para realizar uma cirurgia, o general foi preso, aos 82 anos, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón – o magistrado acusava Pinochet por execuções, torturas e desaparecimento de pessoas durante a ditadura, baseando-se em casos de vítimas espanholas. Pinochet ficou em prisão domiciliar por 503 dias.

No Brasil, o então deputado Jair Bolsonaro subiu à tribuna do Congresso para repreender a ação do juiz e defender Pinochet. O que seria pior para um país, questionou: “O que o general Pinochet talvez tenha feito no passado, exterminando, matando baderneiros, ou a democracia no país (Brasil), que hoje mata milhões pelo descaso?”, comparou.

O Reino Unido negou a transferência de Pinochet para a Espanha, mas o caso foi um marco na jurisprudência internacional sobre crimes contra a humanidade.

Corrupção e tráfico

Outra polêmica que rondou a imagem de Pinochet após o fim de seu governo foi a revelação de contas mantidas secretamente em bancos no exterior. Enquanto investigava casos de lavagem de dinheiro, uma subcomissão do Senado dos EUA acabou encontrando os valores mantidos pelo ex-general e sua família no Riggs Bank, organização com sede em Washington e filiais em Londres.

Pinochet e sua família mantinham, segundo o Senado americano, cerca de US$ 8 milhões em contas na instituição – os valores teriam sido depositados entre 1994 e 2002. Somado ao de outras contas em outros bancos estrangeiros, o valor subia para quase US$ 15 milhões.

A investigação revelou, em 2004, que Pinochet conseguira transferir, enquanto estava detido, cerca de US$ 1,6 milhão do total para uma conta nos EUA.

No ano passado, a Suprema Corte chilena ordenou à família do ex-general que devolvesse aos cofres públicos parte dos valores – cerca de US$ 5,1 milhões, de acordo com a sentença.

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Image caption Grupos defendem herança de Pinochet, apesar de violações de direitos humanos

Segundo a historiadora Elisa Borges, se no exterior a imagem negativa do general já era consolidada devido aos crimes da ditadura, no Chile as acusações foram “um divisor de águas”.

“A partir daí, a imagem dele passa a ser questionada por setores da população que até então o apoiavam, principalmente segmentos da classe média e da classe média alta que tinham um discurso de que militares não estavam envolvidos em corrupção”, afirma Borges.

A partir daí, afirma, começou a haver também um questionamento moral em torno do ex-ditador. “As pessoas começaram a se perguntar: ‘ele dizia que salvou a pátria, mas rouba em benefício próprio e da família? Como se explica o crescimento de seu patrimônio?'”.

O general foi alvo de 300 processos judiciais no fim da vida, além de acusações de corrupção e de enriquecimento com a venda cocaína produzida em instalações do Exército – mas nunca foi a julgamento.

Alguns dos ex-chefes dos órgãos de repressão de seu governo, entretanto, foram condenados a dezenas de anos na prisão por crimes como tortura, sequestro e desaparecimento de pessoas.

‘Nunca mais!’

Durante a ditadura chilena, o governo usava fortemente o aparato de repressão para controlar a narrativa sobre suas políticas.

Segundo Samantha Quadrat, professora de História da América na UFF, as medidas neoliberais econômicas foram implementadas sem espaço para debate na sociedade, ao mesmo tempo em que se alimentava a ideia de que o governo Allende havia sido um caos.

“Havia uma disputa muito grande da memória, e isso é visível até os dias de hoje”, afirma a historiadora.

Essa memória começou a ser “desconstruída” com uma série de políticas implementadas a partir dos anos 1990.

No esforço de promover uma reconciliação com o passado e dizer “nunca mais!”, o Chile tem operado uma extensa revisão dos crimes que ocorreram na ditadura, buscando responsabilizar e punir militares e civis envolvidos na violação de direitos humanos, indenizar vítimas e revelar a extensão dos crimes – processo radicalmente diferente do ocorrido no Brasil, onde agentes de Estado nunca foram punidos por crimes cometidos durante a ditadura.

O marco inicial desse processo no Chile foi a instalação de uma Comissão da Verdade logo após o fim do regime, cujo relatório foi publicado em 1991, um ano depois. Já o Brasil só instalou uma Comissão da Verdade em 2012, durante do governo da ex-presidente Dilma Rousseff, quase 30 anos após o fim do regime militar brasileiro.

Os esforços incluíram o estabelecimento de mais de 200 centros ligados à memória da ditadura ao redor do país, como a Clínica Santa Lucía, Londres 83 e o Estádio Nacional de futebol, em Santiago, usados como centros de detenção e tortura durante o regime – e hoje abertos a visitação para que não se esqueça esse passado.

“A ideia é de que é preciso lembrar para não repetir, não deixar acontecer de novo”, diz Maria Paula Nascimento Araujo, professora de História contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Image caption Ano após ano, parentes clamam por seus entes queridos. ‘Onde estão?’ é um dos slogans da Associação dos Familiares dos Detidos Desaparecidos

Disputas de narrativa

Entretanto, visões diferentes sobre passado ainda dividem o país, como ilustram frequentes disputas de narrativa.

Inaugurado em 2011 pela então presidente Michelle Bachelet, cujos pais foram perseguidos pela ditadura, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, foi construído para lembrar as vítimas das violações de direitos humanos.

Em agosto do ano passado, o recém-empossado ministro da Cultura do governo Piñera foi derrubado dias por fazer críticas ao museu. Mauricio Rojas havia tachado o espaço de “um museu de esquerda, para contar uma versão falsa da história de Chile”, e disse que era uma “montagem” para deixar o espectador “atônito” e “impedir-lhe de raciocinar”. As críticas geraram protestos e Rojas foi destituído.

As disputas sobre como a história do golpe e da ditadura deve ser contada também se deu nas salas de aula. Após a ditadura, os currículos escolares foram reformulados, e o ensino sobre a ditadura e sobre o governo da Unidade Popular, de Allende, se tornou obrigatório.

Até então, diz a historiadora Samantha Quadrat, predominava o modelo estabelecido por Pinochet, que introduziu disciplinas como Educação Moral e Cívica, como no Brasil durante a ditadura, e privilegiava um modelo de ensino sem contestação, baseado em uma história “tradicional, de heróis, fatos e datas, sem uma pedagogia crítica”, afirma.

Em 2012, entretanto, o governo do presidente Piñera, em seu primeiro mandato, enfrentou protestos acirrados quando tentou mudar a terminologia usada nos livros escolares. A orientação era usar a expressão “regime militar”, e não em ditadura, e suprimir a palavra “golpe”. A oposição denunciou tentativas de maquiar a realidade, e o governo voltou atrás.

Bolsonarismo

Quando Pinochet morreu, em 2006, Bolsonaro remeteu ao Itamaraty um telegrama para ser entregue ao seu neto, Augusto Pinochet Molina, cumprimentando o neto do “saudoso general” e afirmando que o “elevado índice de desenvolvimento humano ora desfrutado pelos irmãos chilenos em muito se deve às ações desenvolvidas” no governo autoritário. À época, o Itamaraty se negou a transmitir o telegrama.

A morte gerou forte debate no país sobre “como fazer o velório de um ex-ditador”, lembra Samantha Quadrat, ilustrando as divisões no país.

“Teve gente que considerou o fim de uma era e comemorou a morte de uma figura nefasta. Outros lamentaram, e buscaram alguma forma de se despedir”, lembra. O governo de Bachelet acabou optando por não prestar honras de Estado, nem declarar luto oficial.

“O Brasil é um país importante para as políticas latino-americanas, e as decisões tomadas aqui impactam os países vizinhos”, lembra a historiadora. “Você ter um presidente que defende a ditadura, não só a nossa como dos países vizinhos, repercute nos demais países.”

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Image caption Piñera convidou políticos do país para um jantar neste sábado em homenagem a Bolsonaro, mas opositores disseram que não vão

“Em um momento em que a América Latina caminha para governos de direita”, afirma, um presidente externar publicamente posições de que “a ditadura não foi tão ruim assim” tem preocupado especialistas e organizações de direitos humanos na região.

Elisa Borges ressalta que o Chile está até hoje se esforçando para resolver os problemas deixados pela ditadura, e engajado no processo de apuração de seus crimes políticos. Nesse contexto, a chegada de um líder político com o histórico de posicionamentos de Bolsonaro sobre minorias e sobre a ditadura gera incômodo:

“A pauta dos direitos humanos é muito cara ao país. O Chile tem ainda vários traumas e questões abertas sobre o processo ditatorial”, diz a historiadora da UFF.

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Fonte: BBC